Paula Guimarães

“A palavra de ordem deve ser preparar a longevidade, estimular que as pessoas sejam donas da sua vontade em qualquer momento e em qualquer idade e promover a sua reflexão crítica e o planeamento das etapas mais avançadas da vida.”

Paula Guimarães

Na nossa análise do preconceito de idade no enquadramento legal, vamos aprofundar questões críticas em torno da proteção e dos direitos dos indivíduos mais velhos. Para tal, temos o privilégio de conversar com Paula Guimarães, uma jurista experiente cuja carreira se estende por mais de três décadas em organizações públicas e da economia social nos domínios da Intervenção Social, Envelhecimento, Reinserção Social, Responsabilidade Social e Voluntariado.
A sua dedicação ao bem-estar da sociedade vai para além dos seus conhecimentos jurídicos, actualmente ocupa o cargo de Coordenadora do Observatório da Responsabilidade Social e das Instituições de Ensino Superior (ORSIES), é também dirigente associativa, formadora, promotora da Casa Museu Oliveira Guimarães e docente em programas de pós-graduação e mestrado em sustentabilidade, economia social e envelhecimento.
Com a nossa convidada, Paula Guimarães, iremos analisar aspetos jurídicos específicos, desde a definição de preconceito de idade até às salvaguardas existentes para as pessoas mais velhas, assim como explorar as complexidades da justiça intergeracional, políticas de reforma e disposições de direito civil.

No nosso atual quadro jurídico, existe alguma definição formalmente reconhecida para o preconceito de idade?

Não, nem sequer referência à idade como potencial fator discriminatório no contexto do artigo 13º da Constituição. Para combater o idadismo só nos podemos socorrer do artigo 21º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

“O conceito de vítima do preconceito da idade é válido para todas as pessoas de todas as idades. Em determinados aspetos os jovens também são prejudicados em razão da idade.”

Que vias de recurso estão disponíveis para as pessoas que se consideram vítimas de preconceito de idade? Pode fornecer-nos informações sobre organizações ou entidades específicas que oferecem apoio e assistência a pessoas vítimas de violência ou discriminação relacionada com a idade?


O conceito de vítima do preconceito da idade é válido para todas as pessoas de todas as idades. Em determinados aspetos os jovens também são prejudicados em razão da idade. A discriminação tendo por base a idade pode ser denunciada recorrendo ao artigo anteriormente referido da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Podemos recorrer à Provedoria de Justiça se se tratar de um ato praticado pela administração pública ou às estruturas de defesa do consumidor se for no contexto comercial. Nem todos os casos de discriminação em razão da idade podem ser qualificados como crime ou considerados atos de violência. Nestes últimos casos as pessoas devem recorrer às estruturas policiais e judiciais adequadas e naturalmente ao apoio da APAV.

Considerando a reconhecida necessidade de um quadro legal eficaz para proteger as pessoas idosas do abuso e da violência, como podem os sistemas legais encorajar a denúncia por parte das vítimas idosas que muitas vezes sofrem danos graves sem revelar incidentes de violência familiar?

Não reconheço essa necessidade e sou totalmente contra legislação específica dirigida a pessoas mais velhas. Esse é o pior tipo de idadismo. As pessoas mais velhas são adultas, na posse de todos os direitos e deveres. Não é a idade que as torna vulneráveis, são as dependências ou perdas de capacidade, que podem existir em todas as idades. Temos legislação suficiente para proteger os mais vulneráveis, Não precisamos de mais legislação, precisamos de alterar algumas dimensões nomeadamente no Direito de Família e Direito Sucessório, de mudar atitudes e de combater a iliteracia jurídica dos cidadãos, em especial os familiares das pessoas mais velhas e os profissionais. Existem todos os mecanismos suficientes, as pessoas é que não os conhecem ou não os utilizam.

Tendo em conta que uma relação familiar não legitima nenhum membro da família a tomar decisões sobre a pessoa maior ou os seus bens, que enquadramento legal específico existe em Portugal para salvaguardar as pessoas idosas, especialmente as que se encontram em situações mais vulneráveis? Como se define a fronteira entre a intervenção familiar ativa que visa garantir a qualidade de vida da pessoa idosa e as ações que podem ser consideradas abusivas ou atentatórias da sua autonomia e dos seus direitos?

A fronteira é simples. Os familiares com obrigação de alimentos têm o dever de apoiar a satisfação das necessidades das pessoas mais velhas se tiverem condições para isso. Os familiares a quem a pessoa idosa atribui mandato podem atuar dentro dos limites do mandato. Os familiares reconhecidos como cuidadores informais nos termos da Lei nº100/2019 têm o dever de prestar cuidados e os familiares que tenham sido nomeados acompanhantes pelo tribunal em caso de capacidade diminuída devem assumir a representação legal das pessoas em situação de incapacidade. Fora destas situações os familiares não têm nenhum poder de interferir, decidir ou administrar.

Como é que a passagem do anterior sistema de interdição e inabilitação para o atual Regime do Maior Acompanhado, implementado desde 2019, afetou especificamente as pessoas idosas? Em particular, que mudanças nos papéis, direitos e proteções surgiram para as pessoas mais velhas à medida que os antigos tutores transitam para acompanhantes e os cidadãos interditos se tornam adultos acompanhados?

O regime não é para as pessoas idosas! É muito importante que isso seja claro. O regime é para as pessoas que perderam a sua capacidade cognitiva. A maioria das pessoas idosas não precisa do regime e muitas pessoas mais jovens precisam. Nesse sentido não houve nenhum impacto específico para este grupo populacional.
Globalmente as grandes mudanças foram a vontade das pessoas com perda de capacidade, a graduação e personalização das medidas e a possibilidade de outras pessoas assumirem o papel de acompanhantes para além dos familiares.


No contexto da idade de reforma obrigatória para os trabalhadores públicos aos 70 anos, como é que esta política se alinha com os princípios da justiça intergeracional, tendo em conta factores como a evolução da esperança de vida, a variedade de competências e as potenciais contribuições dos indivíduos para além da idade de reforma tradicional? Além disso, como é que esta política aborda as preocupações relacionadas com o envelhecimento, garantindo um tratamento justo independentemente da formação, especialização ou condição física de um indivíduo?

Não é uma resposta fácil. O limite de idade pode ser questionado numa ótica de discriminação, mas, ao mesmo tempo, é fundamental reconhecer que é necessária uma renovação geracional e garantir a entrada no mercado de trabalho dos mais jovens e que em determinadas áreas a idade pode dificultar o desempenho adequado das funções. Faz sentido para mim, por questões sociológicas, haver um limite de idade, mas também faz sentido investir numa política de preparação para a reforma que ajude a fazer essa transição e garanta que as pessoas mais velhas continuam a ser úteis e a sentirem-se realizadas.

“todo o ecossistema de trabalho está em profunda mudança e a IA vai introduzir outras derivas ainda mais abruptas.”

Como é que aborda a complexa relação entre a idade da reforma, o envelhecimento e a justiça intergeracional, especialmente em ambientes de trabalho como instituições públicas, onde a progressão dos indivíduos mais jovens depende da reforma dos mais velhos? Como é que as organizações podem encontrar um equilíbrio para garantir a equidade intergeracional no acesso às oportunidades de emprego, tal como salientado na diretiva da UE sobre a discriminação com base na idade no trabalho?


Em complemento do que já disse atrás, todo o ecossistema de trabalho está em profunda mudança e a IA vai introduzir outras derivas ainda mais abruptas. A justiça intergeracional pode ser posta em causa se os sistemas de proteção social se tornarem insustentáveis e, portanto, as questões do financiamento e da revisão das carreiras contributivas é urgente. As organizações, públicas ou privadas precisam de todos e de todas as idades, mas cada um deve ter o bom senso de avaliar a sua performance, o valor do seu contributo e saber sair no momento certo, dando lugar aos mais jovens. Os mais velhos podem ser consultores, mentores, referentes, mas não têm necessariamente que continuar como executivos. Depende de cada função, de cada organização e sobretudo de cada pessoa. Mas se alguém precisa de trabalhar até morrer (sem ser por questões financeiras, pode significar que não investiu nas outras dimensões da sua vida, o que é também preocupante.

 

Em que medida a disposição da lei civil portuguesa, designadamente (cf. artigo 1720.º, n.º 1, alínea b) do Código Civil, que impõe que os casamentos celebrados por pessoas com idade igual ou superior a 60 anos sejam celebrados no regime da separação de bens, reflecte pressupostos preconceituosos? De que forma é que este requisito legal, que visa ostensivamente a proteção contra influências indevidas, pode violar o direito do indivíduo ao livre exercício dos direitos da sua personalidade e o princípio da igualdade, nomeadamente quando comparado com cônjuges não sujeitos a tais regimes obrigatórios.


Pessoalmente discordo dessa restrição, tal como discordo de benefícios atribuídos exclusivamente em razão da idade em vez da condição de recursos. Volto a insistir que a idade, por si não nos diminui como sujeitos jurídicos e podemos e devemos ser livres de tomar as decisões relativas à nossa vida e ao nosso património. Por isso defendo tanto o testamento vital, o mandato com vista ao acompanhamento e todas as medidas que nos permitem tomar decisões antecipadas e evitar que outros decidam por nós. Da mesma forma há muito que defendo que a regra seja a sucessão testamentária para que possamos decidir sobre a quem deixamos o nosso património sem termos que preservar a herança para os nossos familiares.
A palavra de ordem deve ser preparar a longevidade, estimular que as pessoas sejam donas da sua vontade em qualquer momento e em qualquer idade e promover a sua reflexão crítica e o planeamento das etapas mais avançadas da vida.

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