Nesta Entrevista Impacto abordaremos a complexa diversidade do pensamento filosófico, com um desafio: confrontar a disparidade de género que prevalece neste campo e amplificar as vozes de mulheres filósofas. Nesta procura de inclusão e diversidade, conversamos com Nuno Nabais, um nome de referência no mundo da filosofia em Portugal.
Nascido em Lisboa em 1957, dedicou a sua vida à investigação, publicação e ensino da Filosofia. Criou e dirigiu a primeira livraria de filosofia de Portugal, no Bairro Alto e em 2007 transferiu a livraria para o edifício da antiga Fábrica do Braço de Prata, em Marvila. Publicado pela Editora Relógio d’Água e desde 1984 que ensina um pouco de tudo no Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa. Foi professor de Teoria do Teatro na Escola Superior de Teatro e Cinema e na Universidade de Évora, ensinou Bio-Ética na Faculdade de Medicina e Epistemologia no Programa Doutoral em Ciência, Arte e Sociedade na Faculdade de Ciências.
Bem-vindos a esta esclarecedora conversa onde nos confrontamos com questões de representação, reconhecimento e resiliência, examinando as barreiras enfrentadas pelas mulheres na área da filosofia e o legado duradouro daquelas que desafiaram as convenções para deixar a sua marca.
A filosofia, apresenta uma representatividade predominantemente masculina (e branca). Na sua opinião que factores sistémicos contribuem para este desequilíbrio?
Na cultura ocidental, não apenas na filosofia, mas em todo o trabalho intelectual, sempre existiu uma enorme assimetria entre géneros. A subalternização da mulher na vida activa, tanto nas economias agrárias como no regime industrial, condenou-a a uma quase inexistência nos domínios da literatura, da ciência e da filosofia. Apenas com a passagem a uma economia que alguns sociólogos designam como produção imaterial ou capitalismo cognitivo, a comunidade feminina tem vindo a desempenhar um papel cada vez mais relevante. São, portanto, factores económicos (de organização da produção) e factores políticos (de modelos de sujeição e de dominação) que explicam a predominância masculina durante séculos.
“Hannah Arendt é o caso muito particular neste panorama das mulheres no horizonte do pensamento filosófico. Ela insistiu na ideia de que o seu pensamento em nada devia ao facto de ser mulher. Sublinhava, pelo contrário, no processo de pensar, o seu carácter neutro quanto ao género. Para Arendt, quando pensamos, ocupamos um não-lugar”
Para si, que filósofas tiveram um impacto mais significativo na reformulação do discurso filosófico e como é que os seus contributos influenciaram o pensamento contemporâneo?
Apenas no séc. XX surgiram mulheres que marcaram a nossa experiência do que seja isso A Filosofia. Destaco Hannah Arendt, Simone de Beauvoir, Luce Irigaray e Judith Butler.
Hannah Arendt é o caso muito particular neste panorama das mulheres no horizonte do pensamento filosófico. Ela insistiu na ideia de que o seu pensamento em nada devia ao facto de ser mulher. Sublinhava, pelo contrário, no processo de pensar, o seu carácter neutro quanto ao género. Para Arendt, quando pensamos, ocupamos um não-lugar, criamos uma distância infinita entre o que pensamos e o nosso enraizamento histórico (a pertença a uma nação, a uma época). É pelo pensamento que, mesmo em “tempos sombrios” como aqueles que ela viveu, nos colocamos na esfera do universal. Não que o pensamento de Hannah Arendt tivesse por objecto privilegiado aquilo que há de universal nos nossos tempos. Os seus estudos sobre as origens do totalitarismo de Hitler e Stalin, ou sobre as revoluções americanas, francesas e russas, tornaram-se monumentos na compreensão de acontecimentos bem singulares, profundamente enraizados em lugares e em momentos da história ocidental. A sua atenção ao singular estava na raiz de uma distinção que ela fazia entre a Filosofia e a Política. A Filosofia está sempre no plano do universal e no necessário, enquanto a política mergulha no particular e no contingente. Por isso Hannah Arendt não se considerava uma filósofa, mas apenas uma pensadora da política. Em grande medida, esta sua “humildade” teve um enorme impacto na filosofia contemporânea. Não mais foi possível pensar aquilo que Arendt designa como a “vida activa” (labor, trabalho, e acção política) fora das figuras da contingência, a começar por essa contingência fundamental que é o facto de, cada um de nós, ter nascido em um certo momento e em uma determinada família que nos acolhe. Por isso, o dado primeiro da experiência política é, pela condição da natalidade, o poder de começar, de inaugurar uma série de acontecimentos que envolvem uma comunidade. Hannah Arendt, como pensadora política, inaugura um estilo de trabalho teórico onde se mistura a atenção à actualidade – sobretudo a sua longa reportagem sobre o julgamento de Eichmann em Jerusalém – a crítica literária (leituras de Kafka, Brecht, Goethe), a metafísica medieval na tese sobre o conceito de amor em Santo Agostinho, a história das descontinuidades nas formas de controlo como teoria das revoluções, análise das estruturas da violência, o diálogo com os pensadores políticos contemporâneos (Walter Benjamin, Leo Strauss, Hans Jonas). Hannah Arendt introduziu novos temas no panorama do pensamento contemporâneo, como o da “natalidade” – por oposição à “mortalidade” como marca essencial da condição humana proposta por Heidegger – a importância dos actos de “promessa” e “perdão” na acção política, as várias figuras do “mal” na esfera ética. Entre os herdeiros de Hannah Arendt refiro Levinas, Giorgio Agamben e Julia Kristeva.
“Simone de Beauvoir marcou a ideia de filosofia pelos seus compromissos com causas da actualidade. A sua presença regular em conferências de imprensa, em manifestações de rua, em manifestos a favor das lutas das mulheres (pelo direito ao aborto, por salários iguais aos homens, por melhores condições de apoio à maternidade) tornou arcaica a ideia de filosofia como puro exercício do pensamento. A obra e a acção de Simone de Beauvoir abriram definitivamente as portas ao movimento feminista do séc. XX “
Simone de Beauvoir pratica também um estilo híbrido na pluralidade de registos dos seus textos. O seu livro mais conhecido, O Segundo Sexo, apesar de ser considerado como o grande manifesto feminista depois da segunda guerra mundial, é mais um conjunto de estudos sobre as condições históricas da subordinação das mulheres ao poder económico, político, académico, do que uma meditação sobre o modo de ser do feminino. O “tornar-se mulher” é sobretudo analisado nos seus romances e nas suas peças de teatro. Em paralelo, os seus ensaios, publicados como artigos ou como obras curtas, introduzem temas pouco trabalhados pela tradição filosófica, como a Velhice, a Perversão, a Vergonha. Estes temas são aproximados por Simone de Beauvoir a partir de descrições fenomenológicas de situações de vida, de modos de existência concretos, seguindo aqui o estilo de Sartre e do seu programa existencialista. Como Sartre também, Simone de Beauvoir marcou a ideia de filosofia pelos seus compromissos com causas da actualidade. A sua presença regular em conferências de imprensa, em manifestações de rua, em manifestos a favor das lutas das mulheres (pelo direito ao aborto, por salários iguais aos homens, por melhores condições de apoio à maternidade) tornou arcaica a ideia de filosofia como puro exercício do pensamento. A obra e a acção de Simone de Beauvoir abriram definitivamente as portas ao movimento feminista do séc. XX – que deixou de estar exclusivamente orientado por programas sufragistas ou reivindicações sindicais. As suas paixões fora da relação com Sartre, como as que viveu com o escritor americano Nelson Algren, ou com o secretário pessoal de Sartre e realizador (famoso documentário Shoah) Claude Lanzmann, 17 anos mais novo, romperam os tabus da monogamia e da fidelidade conjugal. A questão “o que é tornar-se mulher?” inspirou novas fenomenologias do corpo próprio (Luce Irigaray, Sarah Kofman), novas poéticas do erotismo feminino (Catherine Clément, Helène Cixous), novas definições do sexo e do género femininos (Judith Butler, Monique Wittig). Mesmo que muitas das militantes das causas feministas de hoje não se revejam nos pressupostos igualitaristas de Simone de Beauvoir, ou no estilo quase submisso das suas relações amorosas, ela ficou para sempre como o momento/monumento em que a filosofia descobre o feminino.
Luce Irigaray é a principal herdeira/crítica de Simone de Beauvoir. Ela é habitualmente considerada a representante da segunda geração do movimento feminista. Contra a luta pela igualdade entre géneros que define o trabalho de Simone de Beauvoir, Luce Irigaray procura aprofundar as diferenças entre o masculino e o feminino, através de uma fenomenologia rigorosa do corpo próprio da mulher nos modos da sua revelação a si e ao Outro. A sua obra maior, Esse Sexo que não é Uno/Um, constrói-se sobre a oposição entre a anatomia masculina – centrada no pénis e na sua unidade/identidade – e a anatomia feminina, sempre já composta por dualidades (os lábios vaginais, os dois seios, dois regimes de orgasmo). Essa dualidade essencial do modo de se aparecer a si da mulher é reforçada pela experiência da maternidade, quando um Outro emerge no interior do seu corpo. Luce Irigaray denuncia por isso os pressupostos de género que organizam o grande modelo teórico do erotismo do séc. XX que é a psicanálise. O próprio conceito freudiano de inconsciente é exposto como o invisível do feminino na subjectividade masculina. Uma nova teoria do afecto, uma metafísica do tacto e da percepção háptica (por oposição à predominância da visão), a ideia de uma pele interior como envaginação da superfície táctil, são tudo contributos originais de Luce Irigaray para o pensamento contemporâneo.
“Esta autonomia do género, esta revelação de que a nossa identidade e a nossa subjectividade não é um dado biológico, mas exprime a dimensão performativa das nossas formas de existência, não só permite compreender a força dos movimentos LGBT em todo o mundo, como obriga a filosofia a enfrentar novas categorias antropológicas, novas modalidades de erotismo.”
Por último, Judith Butler. Ela procura demarcar-se das duas gerações anteriores do movimento feminista. Da primeira, por lutar pela igualdade de género, da segunda por pensar a diferença entre o feminino e o masculino como tendo uma base essencialmente biológica. Judith Butler distingue Sexo de Género. O primeiro é um dado material (nem sempre unívoco), o segundo é performativo, é o resultado de factores sociais de condicionamento dos modos de percepção de si de cada sexo. Segundo Judith Butler, podemos nascer com uma anatomia masculina, mas descobrir que, no plano das emoções, dos sentimentos, e dos nossos gestos mais pessoais, somos femininos. Na construção da subjectividades Butler distingue ainda a esfera do Desejo. Podemos ser do sexo masculino, sentirmo-nos como femininos e desejar a fusão erótica com alguém do género feminino, ou sentir que somos do género feminino, sendo do sexo masculino, e desejar um objecto masculino. Esta autonomia do género, esta revelação de que a nossa identidade e a nossa subjectividade não é um dado biológico, mas exprime a dimensão performativa das nossas formas de existência, não só permite compreender a força dos movimentos LGBT em todo o mundo, como obriga a filosofia a enfrentar novas categorias antropológicas, novas modalidades de erotismo. A obra de Judith Butler foi profundamente influenciada por Michel Foucault, não apenas pelos seus volumes dedicados à História da Sexualidade, mas também pelas suas análises das formas de subjectivação políticas no quadro dos conceitos de “dispositivos disciplinares” e “biopoder”.
“No pensamento contemporâneo, ainda dentro dos estudos sobre o género, chamo a atenção para a obra de Silvia Federici e as suas investigações sobre o fenómeno da caça às bruxas na Europa e nas colónias americanas nos séculos XVI e XVII. Ela mostrou que a invenção do regime do capitalismo fez-se à custa da subalternização das mulheres, condenadas a mão-de-obra não paga como suporte invisível da mão-de-obra assalariada”
Que filósofas contemporâneas recomenda e porquê?
Como referi, destaco os nomes que poderemos considerar clássicos na tradição dos estudos por mulheres e sobre os universos do feminino, como Hannah Arendt, Simone de Beauvoir, Luce Irigaray e Judith Butler.
No pensamento contemporâneo, ainda dentro dos estudos sobre o género, chamo a atenção para a obra de Silvia Federici e as suas investigações sobre o fenómeno da caça às bruxas na Europa e nas colónias americanas nos séculos XVI e XVII. Ela mostrou que a invenção do regime do capitalismo fez-se à custa da subalternização das mulheres, condenadas a mão-de-obra não paga como suporte invisível da mão-de-obra assalariada representada pelos homens atraídos para as grandes fábricas da produção em série. Essa subalternização funcional foi agravada por uma perseguição moral e religiosa a todos os comportamentos de insubmissão, que se traduziu no genocídio de perto de 80.000 mulheres no espaço de 100 anos, condenadas por bruxaria.
Exteriores à luta pela emancipação política, económica, moral das mulheres, existem muitos programas filosóficos no séc. XX e XXI desenvolvidos por autores que se reclamam do sexo feminino ou do género feminino. Simone Weil (Filosofia Política), Iris Murdoch (Metafísica), Elizabeth Anscombe (Filosofia da Mente), Jeanne Hersch (História da Filosofia), Isabelle Stengers (Epistemologia). Em Portugal sublinho as obras de Olga Pombo (Filosofia da Ciência) e Filomena Molder (Estética).
“a recusa dos cânones do rigor demonstrativo e da análise conceptual herdadas da tradição cartesiana, a atenção às pequenas subtilezas emotivas que se jogam nas apreciações éticas e estéticas, uma linguagem que privilegia as modulações do significante em detrimento do prestígio do significado.”
Na sua análise das obras de mulheres filósofas, vê nas suas metodologias e quadros filosóficos diferentes dos tradicionalmente utilizados no discurso filosófico dominado pelos homens? Consegue distinguir uma dimensão de género no pensamento filosófico e, em caso afirmativo, como é que ele se manifesta nas obras de filósofas que abordam questões como o preconceito e a discriminação?
Nas autoras que procuram afirmar a diferença radical entre géneros, existe desde os anos 70 toda uma cultura de uma poética filosófica feminina. Ela teria como marcas a recusa dos cânones do rigor demonstrativo e da análise conceptual herdadas da tradição cartesiana, a atenção às pequenas subtilezas emotivas que se jogam nas apreciações éticas e estéticas, uma linguagem que privilegia as modulações do significante em detrimento do prestígio do significado.
As filósofas têm chamado frequentemente a atenção para aspectos negligenciados do preconceito, como as microagressões, o sexismo e as barreiras institucionais. Como pode a investigação filosófica lançar luz sobre estas formas subtis, mas generalizadas de discriminação, e que papel desempenham as mulheres filósofas na promoção deste discurso?
As mulheres têm sido as principais vítimas das formas de injustiça social e da opressão moral que, apesar de décadas de mil e um combates, continuam a marcar as formas de existência do universo feminino. É por isso compreensível que as mulheres sejam as mais lúcidas quanto a essas formas de opressão e discriminação.
“Os clichés inconscientes são sedimentações de preconceitos, de normas sociais, que discriminam tanto como sofrem discriminações.”
Simone de Beauvoir declarou: “Não se nasce mulher, mas torna-se mulher”. De que forma é que esta perspetiva existencialista sobre género, indica a sua compreensão sobre preconceito e discriminação, particularmente no que diz respeito às normas sociais?
Tanto na perspectiva de Simone de Beauvoir como na de Judith Butler, o tornar-se mulher é sempre uma experiência performativa maioritariamente involuntária. É o processo de interiorização de posturas, de clichés de discurso e de gesto, de adopção inconsciente de modos de avaliação estética, política e moral das comunidades a que pertencem. Os clichés inconscientes são sedimentações de preconceitos, de normas sociais, que discriminam tanto como sofrem discriminações.
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