Nélia Martins Capelinha

Nélia Martins Capelinha

“Em primeiro lugar devemos dotar a sociedade de conhecimento. O que é o autismo? Quando a sociedade perceber o que é autismo já não vai julgar”

Nesta entrevista esclarecedora, temos o privilégio de conversar com Nélia Martins Capelinha, Directora Técnica e Psicóloga Principal da APPDA-Algarve (Associação Portuguesa para as Perturbações do Desenvolvimento e Autismo). Com uma vasta experiência em psicologia clínica e da saúde, necessidades educativas especiais e musicoterapia, traz-nos uma perspetiva única para a compreensão sobre Transtorno do Espectro do Autismo (TEA).

O seu percurso académico, enriquecido com um Mestrado em Musicoterapia e um conjunto diversificado de certificações, reflecte o seu empenho em aliar a psicologia à expressão criativa. Nesta conversa, Nélia Martins Capelinha esclarece vários aspectos sobre o Transtorno do Espectro do Autismo, abordando preconceitos, conceitos erróneos prevalecentes, desafios enfrentados por indivíduos e famílias, a importância da intervenção precoce e estratégias para promover a inclusão e a compreensão. Através das suas ideias e experiências, conhecemos orientações valiosas sobre como promover interacções significativas, construir redes de apoio e promover a sensibilização para o autismo.

Como directora técnica e psicóloga da APPDA-Algarve, pode dar-nos uma ideia abrangente do que é o Transtorno do Espectro do Autismo (TEA), incluindo as suas várias apresentações e características?

O Autismo é uma síndrome neuro-comportamental com origem em perturbações do sistema nervoso central que afeta o desenvolvimento típico da criança. Os sintomas ocorrem nos primeiros três anos de vida e incluem três grandes domínios de perturbação: social, comportamental e comunicacional.

“Muitas pessoas acham que o Autismo é uma doença mental, mas não é, em si, uma doença mental. O que acontece é que pode existir uma maior vulnerabilidade ao desenvolvimento de problemas ao nível da saúde mental”

A sociedade tem frequentemente ideias erradas e preconceitos sobre o autismo, o que leva à estigmatização e à discriminação. Pode esclarecer-nos algumas das ideias erradas e preconceitos mais prevalecentes sobre o autismo e explicar de que forma estas percepções afectam as pessoas com TEA e as suas famílias?

É verdade, apesar da informação que existe atualmente, ainda existem muitas ideias erradas, por exemplo, as pessoas acharem que o Autismo é uma desculpa para um comportamento desadequado ou antissocial, quando há um comportamento incomum pode ser resultado do sofrimento perante uma situação que não tem em conta as necessidades da pessoa (e.g., mudança de rotinas, instruções que não são claras, gritos, …). Ou que o Autismo é apenas uma deficiência. Não é apenas ou sempre uma deficiência, é uma diferença que tem aspetos positivos que são frequentemente negligenciados. Muitas pessoas acham que o Autismo é uma doença mental, mas não é, em si, uma doença mental. O que acontece é que pode existir uma maior vulnerabilidade ao desenvolvimento de problemas ao nível da saúde mental devido ao sofrimento causado pelos conflitos sociais, incompreensão, discriminação e outros fatores. Outro mito é achar-se que o Autismo está presente só em homens e rapazes. O diagnóstico está muito direcionado para aspetos que são mais visíveis em homens do que em mulheres. Também é comum ouvir-se que as pessoas com autismo são estranhas e não têm competências sociais, esta é uma visão crítica que rotula e estigmatiza as pessoas, baseando-se no que é considerado “normal” ao nível das competências sociais.  Contribui para a diminuição da responsabilidade dos empregadores/entidades de se adaptarem e se envolverem com estas pessoas. Outro mito é pensarem que as pessoas com autismo são incapazes de ter empatia pelos outros. O que pode (e deve) ser dito é que sentem empatia de diferentes formas. Também se pensa que quando se conhece uma pessoa com autismo fica-se a conhecer o funcionamento de todas as pessoas com autismo. Não é verdade, o Autismo é um espetro; as pessoas neste Espetro são individuais e diferentes umas das outras. Depois de ter conhecido uma pessoa no Espetro do Autismo, … apenas conheceu uma pessoa!

As pessoas com Transtorno do Espectro do Autismo deparam-se frequentemente com desafios no acesso a actividades de lazer, culturais e desportivas. As limitações parecem resultar da falta de adaptações e de formação para as TEA nas instituições, organizações e profissionais destas áreas por não dispor de estratégias ou recursos suficientes. Como podemos abordar esta questão para garantir que as pessoas com TEA tenham uma gama mais inclusiva e diversificada de escolhas, permitindo-lhes participar plenamente na sociedade?

Sim, sem dúvida, e quando falamos de recursos, podemos logo começar com a ideia errada que têm do que é o autismo. Os recursos que uma pessoa com autismo precisa são diferentes dos recursos que uma pessoa em cadeira de rodas precisa, por exemplo. Quando solicitamos adaptações para uma pessoa com autismo, por vezes dizem-nos que não têm uma rampa, ou não sabem, quando a pessoa com autismo precisa “apenas” que se baixe o volume da música ou a intensidade da luz, ou de um roteiro que o guie num museu, etc. Formação nesta área é sempre bem-vinda. Existe uma carência de recursos a todos os níveis, materiais, humanos, etc, e de uma geral em todos os setores, sejam escolas, empresas, instituições publicas e privadas, etc. Muitos projetos ao longo destes últimos anos têm sido feitos. Os projetos que existem, através de instituições como a federação portuguesa de autismo, Instituto nacional de reabilitação (INR), iniciativas de projetos de associações, etc, vão ajudando a tornar a sociedade mais plena, assim como os apoios sociais e os decretos que apoiam os alunos nas escolas, que não são perfeitos, mas existem, há um caminho a ser traçado. Em primeiro lugar devemos dotar a sociedade de conhecimento. O que é o autismo? Quando a sociedade perceber o que é autismo já não vai julgar, por exemplo, uns pais no supermercado, porque o filho está a fazer uma birra, são julgados porque não o sabem educar. Se a sociedade saber o que é o autismo, que a criança é autista, percebem que a criança poderá estar a ter uma crise sensorial e está em sofrimento, por exemplo. Em vez de julgarem, entendem. Projetos direcionados para escolas em que as diretrizes passam não só por ajudar a criança com autismo a incluir-se, mas também preparar a sociedade para saber lidar com a pessoa com autismo, é por aí, poderia dizer tantas coisas mais…devemos também reforçar as competências familiares…etc.

“Nos meus projetos, nos sítios onde trabalho, tenho tido ao longo destes anos, pessoas que me procuram como psicóloga, que sabem que uso a música como mais uma ferramenta de trabalho e realmente é uma ferramenta poderosa”

O seu percurso profissional conjuga maravilhosamente a sua experiência profissional e a sua paixão pela música, evidente nas suas formações avançadas como musicoterapeuta, com o seu envolvimento na Associação Portuguesa de Música nos Hospitais e enquanto estudante na Tuna Feminina da Universidade Autónoma de Lisboa, a “Damastuna”. Poderia nos falar sobre a criação da Banda Pop-Rock da APPDA-Algarve, denominada “Autisicos”. Pode dar-nos uma ideia da génese deste projeto e dos seus objectivos gerais? Assim como, contar-nos alguma história que envolva participantes e audiências e que se revelou transformadora para ambas as partes, possivelmente desconstruindo preconceitos?

Aliar as minhas duas paixões é fantástico. Puder juntar a psicologia à música e fazer alguns pequenos “milagres” é bastante gratificante. Claro que não resulta com todas as pessoas com autismo, ao contrário do que se possa pensar nem todas as pessoas dentro do espectro gostam de música, quando gostam, sim, trabalhamos e conseguimos coisas interessantes. A banda surgiu como resultado das sessões terapêuticas, onde tenho uma visão privilegiada de quem tem o “dom” para a música. Nos meus projetos, nos sítios onde trabalho, tenho tido ao longo destes anos pessoas que me procuram, como psicóloga, que sabem que uso a música como mais uma ferramenta de trabalho e realmente é uma ferramenta poderosa, tenho assistido ao longo destes quase 20 anos de trabalho a alguns “milagres”, “apenas” porque uso a música. Claro que fui à procura de formação especializada na área, não basta ser música e psicóloga ou professor de música, para fazer musicoterapia. Como qualquer área da saúde, precisa de formação específica. Muitos miúdos mostraram essa predisposição e habilidade e, então surgiu a ideia. Apesar dos aspetos musicais estarem inerentes, eles realmente aprendem a tocar um instrumento, os objetivos são terapêuticos. Desta forma, são trabalhados aspetos que visam aumentar o seu bem-estar pessoal, que visam melhorar a sua saúde, neste caso a saúde mental. Resultado da avaliação psicológica, são trabalhados pontos como a autoestima, estimulação cognitiva, problemas relacionados com a linguagem, leitura e escrita, etc. Mais uma vez ressalvar que se as sessões são terapêuticas, distinguindo-se do ensino da música, pois os objetivos são não musicais.

Uma das atuações que mais marcou a banda, foi o seu primeiro grande concerto, o concerto que a banda participou, em Lisboa para mais de quatrocentas pessoas e estava a ser filmado para a RTP, concerto no âmbito dos 10 anos de inclusão promovido pela federação portuguesa de autismo. Foi emocionante para todos e uma barreira que foi ultrapassada com distinção! Tivemos outras atuações em que as pessoas se surpreenderam, tipo “eles conseguem tocar e cantar!”. Também me lembro da primeira vez que a banda tocou o hino, em que alguns pais se emocionaram, etc. Surpreendente para mim, para eles e para quem assiste.

“A intervenção precoce é crucial! O estímulo recebido através das terapias é a chave para um desenvolvimento que ser quer o mais adaptado à nossa realidade, à nossa sociedade.”

Tem-se vindo a dar cada vez mais importância à intervenção precoce, justamente por se saber do seu papel fundamental como forma de prevenção de resultados negativos e maximização de oportunidades de desenvolvimento para as crianças sinalizadas, ou já diagnosticadas com TEA. Pode explicar-nos melhor a importância das intervenções precoces e que respostas dão às necessidades e desafios enfrentados pelas pessoas com autismo e respectivas famílias?

A intervenção precoce é crucial! O estímulo recebido através das terapias é a chave para um desenvolvimento que ser quer o mais adaptado à nossa realidade, à nossa sociedade. Estou a falar da autonomia, por exemplo, que é fundamental para qualquer pessoa e é uma das razões principais pelas quais os pais procuram a psicologia e as terapias. Os pais querem partir descansados… Os serviços públicos de saúde, prestam esse serviço, o que acontece é que são muitos casos para poucos recursos humanos e as listas de espera são enormes, aqui no Algarve acontece, penso que é geral. Claro que infelizmente uma criança que deveria receber apoio aos 2 anos vai receber aos 4 e a janela de abertura cerebral/neurológica não é a mesma e isso é mau, há aprendizagens que se perdem… então temos os pais que têm de esperar por esta lista de espera e temos os pais que podem pagar terapias, a recorrer aos serviços privados, como associações, clínicas e hospitais privados. Chegamos ao cúmulo de haver listas de espera também no privado. Não está fácil e é tão fulcral este apoio! Quanto mais cedo melhor. Também existem apoios da segurança social para pagar terapias, mas não pagam na totalidade…temos pessoas que quase não conseguem colocar refeições na mesa, como vão pagar terapias, por mais baixo que seja o valor? Relativamente ao diagnostico, os técnicos que o podem fazer têm de ter uma formação específica na área, cara, e os próprios testes são muito caros e as consultas mais caras que o comum, o que dificulta o acesso a um diagnóstico. Aqui, no Algarve, eu faço, e só conheço mais uma colega que pode passar esses testes, não sei se há mais alguém formado e não quero ser injusta, mas veja-se este exemplo, duas pessoas para o Algarve inteiro…difícil.

O acesso à educação e ao emprego pode ser desafiante para as pessoas com Transtorno do Espectro do Autismo, dada a série de barreiras que encontram. Pode explicar os desafios específicos que as pessoas com TEA enfrentam e sugerir medidas para atenuar esses obstáculos? Além disso, pode dar informações sobre os resultados de iniciativas como os “Jovens Mediadores para a Inclusão no Ensino Superior” e o “Laboratório de Inovação e Emprego” na resolução destes desafios?

Através dos projetos financiados pelo INR e cofinanciados pela Federação portuguesa de autismo, “autismo emprego inclusão”, entre outros, tenho dado formação a várias empresas, precisamente para os empregadores perceberem que as pessoas com autismo têm muitas e boas valências e que serão uns excelentes funcionários. Os empregadores ficam surpreendidos com tantas competências que as pessoas com autismo têm. Já temos “miúdos” a trabalhar no Mc Donalds, na Decathlon e na Deloite, e são os melhores! Claro que encontram barreiras, dependendo das suas limitações, como todas as pessoas. Mais uma vez uma sociedade informada é o fundamental. Estamos a falar de pessoas com autismo mais competentes, que vão para a universidade e têm sucesso profissional ou competências para integrar o mercado de trabalho. Como é sabido o autismo é um espectro e temos miúdos que não desenvolvem essa autonomia, têm menos competências cognitivas e aí trabalhamos questões de autonomia da vida diária, por exemplo, e são encaminhados de outra forma.

“De uma forma geral, uma pessoa com autismo poderá ter limitações na comunicação, para promovermos uma comunicação mais eficaz, devemos usar uma linguagem clara e precisa, dar tempo de resposta”

Ao encontrar pessoas com Transtorno do Espectro do Autismo, muitos de nós podem sentir-se inseguros quanto à forma de interagir e comunicar eficazmente. Pode dar orientações sobre como abordar pessoas com TEA de forma respeitosa e sem preconceitos, oferecendo conselhos sobre como promover interacções significativas?

Não existem receitas, nem fórmulas mágicas. Devemos ser nós próprios. Quando conhecermos uma pessoa com autismo apenas estamos a conhecer mais uma pessoa. De qualquer forma, costumo dizer, que nunca os devemos tratar como uns “coitadinhos”, claro que há coisas que têm de aprender ou têm mais dificuldades, como qualquer pessoa. Se há pessoas a precisar de explicações de matemática, há outras a precisar de terapia ocupacional, o objetivo é normalizar a diferença. De uma forma geral, uma pessoa com autismo poderá ter limitações na comunicação, para promovermos uma comunicação mais eficaz, devemos usar uma linguagem clara e precisa, dar tempo de resposta e pode ajudar usarmos suportes visuais; devemos também ter em consideração o impacto das situações sociais, que podem ser percecionadas como assustadoras ou imprevisíveis. Sempre que possível devemos preparar e ajudar a antecipar estas situações. Ainda na comunicação devemos evitar metáforas, perguntas com duplo sentido, ironias, conceitos abstratos.

Quais são as estratégias eficazes para construir e manter redes de apoio para as famílias de pessoas com Transtorno do Espectro do Autismo, e como é que essas redes respondem às diversas necessidades tanto do indivíduo com TEA como dos seus familiares?

A estratégia mais eficaz, na minha opinião, é sempre envolver a comunidade, a sociedade, em primeira instância as famílias e as escolas. Os pais devem ser tidos como parceiros e são fundamentais no processo de tomada de decisão, ao mesmo tempo, que se espera uma maior corresponsabilização no sucesso das várias etapas. Importa realçar que são os pais/familiares quem melhor conhece o seu filho e as suas necessidades e interesses e, por isso, têm um papel fundamental. Cada família é única e cada membro contribui para a composição geral do sistema familiar e por todo o sistema como um todo. Ao mesmo tempo envolver as escolas e orientá-las para uma educação inclusiva. A escola tem um papel fundamental, pois pode e deve definir princípios de colaboração com os pais, considerar a pessoa com autismo um membro de plenos direitos na sociedade, deve saber o que ensinar/transmitir aos pais e a outros membros da família, deve saber ouvir e aprender com as famílias e compreender o papel da família no desenvolvimento e educação da pessoa com autismo.

Pode destacar alguns avanços ou desenvolvimentos promissores na compreensão do autismo e indicar as suas potenciais implicações no futuro para as pessoas com Transtorno do Espectro do Autismo, as suas famílias e a sociedade em geral?

Todos os projetos que promoverem conhecimento sobre o autismo são bem-vindos. Não me quero esquecer de ninguém, nem de nenhuma entidade, existem muitas entidades no mundo a estudar o autismo. Em Portugal a federação portuguesa de autismo e associações federadas/projetos, sempre lutaram e continuam a lutar pela causa – autismo. Realço também o trabalho do pai e médico – neurocientista da Universidade de Coimbra, Miguel Castelo Branco, que dedicou os últimos anos a estudar a área do autismo. O seu trabalho já lhe valeu o Prémio Bial de Medicina Clínica 2022. Posso terminar com uma frase dele que resume toda a entrevista: “o autismo deveria ser algo que convidasse as pessoas a aceitar quem é diferente e a praticar o exercício da tolerância”.

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