Marta Carmo

Marta Carmo

“deveríamos procurar nutrir relações intergeracionais e procurar experiências de aprendizagem verdadeiramente intergeracionais”

Para uma análise profunda da complexa intersecção entre a idade e a discriminação, entrevistámos Marta Carmo. Licenciada em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa e com um LL.M em Direito Internacional pela Universidade de Maastricht, nos Países Baixos, Marta Carmo tem trilhado um caminho dedicado à defesa dos direitos humanos. O seu percurso conduziu-a à equipa de projetos da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) em 2017, onde tem estado ativamente envolvida em iniciativas cofinanciadas pela Comissão Europeia, centrando-se em questões cruciais como os direitos das vítimas, os crimes de ódio e a discriminação.
Desde 2019, tem desempenhado um papel fundamental na implementação do projeto Portugal Mais Velho, um esforço de colaboração entre a APAV e a Fundação Calouste Gulbenkian. Esta iniciativa dedica-se a abordar a questão crítica da violência contra indivíduos mais velhos, lançando luz sobre os desafios enfrentados por este grupo demográfico.
Junte-se a nós nesta reflexão esclarecedora em que Marta Carmo apresenta perspectivas valiosas sobre o idadismo, visando uma abordagem mais inclusiva e centrada nos direitos humanos em relação aos desafios enfrentados pelos indivíduos mais velhos na sociedade.

Pode partilhar connosco ideias sobre os estereótipos e percepções prevalecentes em torno do envelhecimento que, na sua experiência, impedem o reconhecimento e a proteção dos direitos das pessoas idosas?

O envelhecimento é quase sempre encarado, pelas pessoas e pela sociedade, como algo negativo. Pelo menos nas sociedades ocidentais, está quase sempre associado a doenças, rugas, cabelos brancos, perda de capacidades, de autonomia, de poder económico e decisório e de relevância para a sociedade.
Penso que esta perceção, que, muitas vezes, é autoinfligida, resulta numa visão homogénea da população idosa, ou seja, temos dificuldade em pensar nas pessoas idosas como um grupo populacional tão diverso como outro qualquer. Resulta, também, num fraco reconhecimento dos seus direitos e, mais preocupante, resulta muitas vezes no não exercício desses direitos.

De acordo com a sua experiência, que desafios surgem quando se investiga as dimensões menos visíveis da violência contra os idosos, e como é que esses desafios podem ser eficazmente abordados?

Os estudos de prevalência da violência contra pessoas idosas, quer a nível nacional, quer a nível internacional, indicam que a forma de violência mais prevalente, ou seja, mais comum, é a violência psicológica. Considero que esta é, em muitas circunstâncias, a mais invisível, uma vez que muitos dos comportamentos violentos são uma manifestação de preconceitos em relação à idade totalmente normalizados na nossa sociedade, sendo um exemplo disso, a infantilização das pessoas mais velhas.
Outra dimensão consideravelmente invisível da violência contra pessoas idosas é a dimensão da violência institucional, e penso que o grande desafio a este nível é a necessária mudança de paradigma do atual sistema protecionista, no qual as pessoas idosas são vistas como sujeitos passivos, que necessitam de ajuda e proteção, para um sistema radicado nos direitos humanos em que as pessoas idosas são vistas como pessoas adultas, sujeitos ativos de direito. A esta necessidade junta-se a cada vez mais urgente revisão e criação de políticas públicas concertadas de valorização, formação e apoio de todas as pessoas que, a título profissional ou familiar, prestam cuidados.
Por fim, uma dimensão da violência que é, muitas vezes também invisível, mas que não podemos deixar de parte, é a violência estrutural e cultural que diz respeito aos valores socioculturais prevalentes, à legislação e às políticas públicas (ou falta delas) que resultam na discriminação ou marginalização das pessoas idosas.

“todas as vítimas de crime merecem ver o seu estatuto e direitos reconhecidos”

À luz dos desafios sociais associados à visão negativa do envelhecimento e à escassa notificação da violência contra as pessoas idosas, que estratégias defende a APAV para encorajar a notificação de tais incidentes para uma representação mais precisa da violência contra as pessoas idosas?

A APAV acredita que a informação e consciência da população em geral, mais velha ou mais nova, acerca do que constitui crime e violência, dos seus direitos como vítima, nomeadamente o direito a apresentar denúncia e a receber informação e apoio, são fundamentais. Não porque se queira, apenas, conhecer a prevalência real do fenómeno da violência contra pessoas idosas, mas, acima de tudo, porque acreditamos que todas as vítimas de crime merecem ver o seu estatuto e direitos reconhecidos.
Reconhecendo os obstáculos que podem existir, a nível individual, à denúncia, acreditamos que a confidencialidade e a dispensa de apresentação de denúncia às autoridades para recorrer aos serviços de apoio da APAV são, também, essenciais na construção da relação de confiança com as vítimas. Para além disso, apostamos na diversificação das formas como as pessoas podem contactar a APAV, e como os serviços funcionam, adaptando-nos às realidades e necessidades locais. Por fim, trabalhamos, também, na construção de uma rede de parcerias e referenciação, acreditando que tudo isto pode encorajar a procura de apoio por parte das vítimas, suas famílias e pessoas amigas.

“apostamos na diversificação das formas como as pessoas podem contactar a APAV, e como os serviços funcionam, adaptando-nos às realidades e necessidades locais”

Ao observar o preconceito idadismo e a sua potencial ligação a uma maior tolerância da violência contra os idosos, que estratégias ou iniciativas recomenda a APAV para promover uma mudança nas atitudes sociais, enfatizando os direitos humanos, a educação e os enquadramentos legais para a proteção das pessoas idosas?

No que diz respeito à mudança de atitudes, como disse anteriormente, muitas delas muito enraizadas, que resultam de preconceitos e falta de informação, acreditamos que é, precisamente, a partilha de mais informação, no sentido de desconstruir esses preconceitos, que poderá fazer a diferença.
Num nível mais geral, campanhas de sensibilização e ferramentas informativas acessíveis, são instrumentos muito eficazes.
Num nível mais específico que, no âmbito da violência contra pessoas idosas consideramos muito importante, e que diz respeito às famílias e pessoas cuidadoras, , sejam familiares ou profissionais, a formação é, sem dúvida, um instrumento essencial, não só na valorização pessoal e profissional destas pessoas, mas também na mudança daquelas atitudes que, muitas vezes até sem consciência da parte de quem as pratica, resultam numa prestação de cuidados não respeitadora dos direitos da pessoa idosa cuidada.

“O abandono de pessoas idosas em hospitais é, sem sombra de dúvida, um fenómeno que nos deve preocupar, e que é sintomático da escassez e, atrevo-me a dizer, desadequação, das respostas sociais atuais”

Considerando os desafios associados ao abandono de pessoas idosas em hospitais, especialmente considerando potenciais factores económicos e sociais, como sugere a APAV que se encontre um equilíbrio entre a abordagem das causas profundas do abandono e a garantia do bem-estar e dos direitos das pessoas idosas?

O abandono de pessoas idosas em hospitais é, sem sombra de dúvida, um fenómeno que nos deve preocupar, e que é sintomático da escassez e, atrevo-me a dizer, desadequação, das respostas sociais atuais.
Há já algum tempo que temos procurado alertar para a importância de compreendermos melhor este fenómeno e, para isso, sugerimos a realização de um estudo nacional que nos permitisse perceber, de forma fundamentada, quem são as pessoas idosas abandonadas nos hospitais, por que estão nessa situação, por que se mantêm nela, e que respostas poderiam ser adequadas.
No que toca à solução, o equilíbrio que menciona poderia ser alcançado com políticas públicas concertadas: por um lado, o aperfeiçoamento das medidas desenhadas para permitir os cuidados prestados pelas famílias que têm essa possibilidade e a desejam; e, por outro, uma séria revisão das atuais respostas sociais.
Neste último ponto, não me refiro apenas a dotar as respostas que já existem de mais e melhores recursos – o que é, indiscutivelmente, necessário e que diminuiria significativamente a incidência do abandono em hospitais – mas, também, uma reflexão sobre como adaptar os modelos existentes ou, até, criar novos modelos, para melhor responder às necessidades e garantir os direitos da população idosa atual e do futuro que está, como toda a sociedade, em constante mudança.

Tendo em conta os desafios evidentes no que respeita à falta de apoio pelo Estado aos cuidados continuados a pessoas idosas em Portugal, que alterações ou intervenções políticas recomenda a APAV para evitar que o Estado contribua inadvertidamente para o abandono dos idosos e para assegurar o seu acesso a condições de vida dignas?

Neste ponto, volto a referir a necessidade de políticas públicas concertadas que tenham como base os direitos humanos das pessoas idosas. Estas políticas públicas devem procurar garantir o envelhecimento em casa e na comunidade, procurando assegurar, de forma efetiva, um conjunto de direitos da pessoa cuidada e dando, às pessoas cuidadoras, mais uma vez, familiares ou profissionais, condições para prestar esses cuidados.
No âmbito dos cuidados na comunidade, através das respostas sociais, ainda que acreditemos que seja necessária a revisão, anteriormente mencionada, dos modelos existentes, o Estado deverá, pelo menos num tempo mais imediato, cumprir melhor as suas funções fiscalizadoras, passando a focar-se mais na qualidade dos serviços prestados do que em questões meramente burocráticas.

“Um dos valores da APAV é a não discriminação e a nossa atuação pauta-se por, não apenas promover este valor na sociedade, como por implementá-lo na prestação dos serviços de apoio que prestamos a vítimas, suas famílias e pessoas amigas”

As estatísticas da APAV e do projeto Envelhecimento e Violência (do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge) sublinham a significativa intersecção entre idade, género e violência doméstica, revelando uma maior prevalência de vitimização entre as mulheres idosas. Tendo em conta estes resultados, como é que a APAV aborda a interseccionalidade do preconceito de idade e da discriminação de género nas suas iniciativas e serviços de apoio? Que estratégias ou recomendações propõe a APAV para abordar as vulnerabilidades específicas enfrentadas pelas mulheres idosas que sofrem violência?

Um dos valores da APAV é a não discriminação e a nossa atuação pauta-se por, não apenas promover este valor na sociedade, como por implementá-lo na prestação dos serviços de apoio que prestamos a vítimas, suas famílias e pessoas amigas.
Isto implica olhar para cada pessoa vítima de crime ou violência na sua complexidade como ser humano com as suas diferentes características, para reconhecer as suas necessidades únicas, a forma como os potenciais fatores de vulnerabilidade se cruzam, e os efeitos que tal cruzamento produz na experiência de vitimização daquela pessoa.
Sem dúvida, a grande maioria das pessoas idosas vítimas de crime que a APAV apoia são mulheres, também na sua maioria, vítimas de violência doméstica. Para responder às suas necessidades como vítimas, durante a prestação do serviço de apoio, olhamos para essas mulheres não apenas com foco na sua idade, mas também noutras suas características, incluindo o género; procuramos compreender o fenómeno da violência doméstica como sendo, na maior parte dos casos, um fenómeno de vitimação continuada que, por vezes, se perpetua durante décadas; e procuramos identificar não apenas as necessidades específicas daquela mulher idosa, mas também os fatores protetores – fatores que podem reduzir a probabilidade de a pessoa em causa voltar a ser vítima – que poderemos trabalhar com essa mulher.

“deveríamos procurar nutrir relações intergeracionais e procurar experiências de aprendizagem verdadeiramente intergeracionais”

Tendo em conta a evolução do panorama demográfico com o envelhecimento da população, como podem as sociedades, a nível mundial, incentivar uma perspetiva mais positiva e inclusiva do envelhecimento, reconhecendo as diversas capacidades e contribuições dos idosos em vários aspectos da vida, incluindo a força de trabalho, o envolvimento na comunidade e a participação económica?

Penso que isto pode acontecer em diferentes níveis. Num nível mais individual, acredito que todas as pessoas deveriam preparar-se melhor, ao longo de toda a sua vida, para o seu próprio envelhecimento, sendo, aqui, fundamental o papel da educação.
Depois, num nível relacional, deveríamos procurar nutrir relações intergeracionais e procurar experiências de aprendizagem verdadeiramente intergeracionais. E aqui sublinho o “verdadeiramente” porque, acredito que experiências intergeracionais não passam apenas por ter, na mesma sala, crianças e pessoas idosas; mas, sim, por momentos, de diferentes naturezas, em que duas pessoas, com diferentes idades, trocam conhecimento, ensinam algo uma à outra.
Por fim, num nível mais global, penso que uma representação mais realista das pessoas idosas nos meios de comunicação social, nos filmes, nas séries, em livros, em publicidade, e outros, poderá, de facto, contribuir para que a população repense a sua visão sobre as pessoas idosas e o seu próprio processo de envelhecimento. Há já alguns exemplos disto, por isso, penso que estamos a dar os primeiros passos, mas há ainda, sem dúvida, muito a fazer.

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