Maribel Mendes Sobreira

Maribel Mendes Sobreira

“O país, ao fazer parte da comunidade europeia e do contexto da globalização, vê-se forçado (e bem) a confrontar suas feridas históricas, muitas vezes ainda não resolvidas ou reconhecidas plenamente. Essas feridas incluem, entre outras, o colonialismo, o patriarcado e a heteronormatividade, que continuam a influenciar a maneira como as narrativas são construídas e apresentadas nos espaços culturais”

Hoje temos a honra de conversar com Maribel Mendes Sobreira, uma pensadora e investigadora multifacetada que combina de forma única os campos da filosofia e da arquitetura no seu trabalho. Mestre em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL), é atualmente doutoranda na mesma disciplina. O seu percurso académico tem sido pautado por uma profunda exploração do conceito de espaço e do seu impacto na formação da subjetividade, reflectindo uma abordagem crítica interseccional às questões contemporâneas. Paralelamente às suas actividades académicas, é uma prolífica ensaísta, investigadora e educadora, contribuindo para um vasto leque de discussões sobre cultura visual, teoria queer, feminismo e antirracismo.

Maribel Mendes Sobreira é curadora activa e activista cultural, co-fundadora do ColectivoFACA, um projeto que funde a prática curatorial com a cidadania ativa. O seu envolvimento com grandes instituições culturais como o MAAT (Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia) e o MAC/CCB (Museu de Arte Contemporânea/Centro Cultural de Belém) sublinha ainda mais o seu empenho em desafiar as narrativas normativas no mundo da arte. O seu trabalho caracteriza-se por um envolvimento crítico com a política da perceção, questionando a forma como as dinâmicas de poder moldam a nossa compreensão do espaço, da cultura e da identidade.

Nesta entrevista, Maribel Mendes Sobreira aborda o papel da cultura visual na perpetuação ou desconstrução de preconceitos sociais, a intersecção da arquitetura e da filosofia na reimaginação de espaços urbanos e a importância da interseccionalidade nas práticas curatoriais e académicas. Apresenta ideias sobre os desafios da descolonização da arte, a sub-representação das mulheres na história da arte e a necessidade de os museus representarem melhor as perspectivas LGBTQI+ , feministas e anti-racistas. Através das suas respostas reflectidas, Maribel Mendes Sobreira sublinha a urgência de repensarmos as narrativas estabelecidas e de defender uma maior inclusão e justiça social na esfera cultural.

“Se virmos bem será uma minoria que pretende garantir e perpetuar os seus privilégios, privando uma parte da população de ser em pleno, remetendo-a para o plano da “minoria” e limitando o acesso aos lugares de poder”

A cultura visual desempenha um papel significativo na formação e no reflexo dos preconceitos sociais. A partir da sua vasta experiência na área curatorial, como vê a arte contemporânea a abordar e a desafiar preconceitos enraizados? Existem estratégias ou temas específicos que considere particularmente eficazes para confrontar o preconceito? 

A cultura visual desempenha um papel fundamental. Acompanha-nos diariamente, sem nos apercebermos, e é a partir dela que construímos e desconstruímos os gazes formados pelo sistema cis-hetero-colonial, o chamado cânone ou normatização do olhar e, consequentemente, a nossa ação e o nosso modo de pensar. Quer queiramos quer não, o que chamamos de norma está assente em decisões políticas, num pensamento que querem como dominante e esse pensamento é detido por uma minoria (conservadora e financeira) que o toma para si e o transforma numa norma, num padrão, usando o disfarce da maioria e da universalidade. O conceito de maioria usado como argumento carrega em si uma falácia, que é sempre representacional: quem detém o poder dessa representação?

Se virmos bem, é uma minoria que pretende garantir e perpetuar os seus privilégios, privando uma parte da população de ser em pleno, remetendo-a para o plano da “minoria” e limitando o acesso aos lugares de poder. Veja-se quem detém o poder em cargos de decisão na área cultural em Portugal, por exemplo. Só este pormenor vai ditar o que se vê, ouve e lê.

O desafio passa por questionarmos os protocolos tácitos que a sociedade foi construindo, e uma parte do sector da arte contemporânea já o está a fazer a partir do seu lugar de fala, mas muitas vezes o sistema secundariza e tira voz. Estamos a lutar contra uma máquina sistémica que demoniza quem pensa a partir de um lugar que cria desconforto à tal maioria abstrata.

“Ao olhar para as cidades através da lente da interseccionalidade, que pode ser entendida como um entrelaçamento de género, raça e classe, percebemos que as cidades operam como mecanismos de decisão política que, de forma invisível, escolhem e excluem”

O seu trabalho questiona as perspectivas patriarcais e produtivistas dos espaços urbanos. De que forma pode a arquitetura contribuir para reimaginar as cidades numa perspetiva interseccional, promovendo a justiça espacial, social e ecológica? Pode dar exemplos de projectos ou abordagens que incorporem efetivamente estes princípios?

Para responder à questão, é importante destacar que a minha formação é ambivalente, envolvendo tanto a arquitetura quanto a filosofia, sendo a partir desta última que construo o meu lugar de fala e o meu pensamento. O meu trabalho tem problematizado as dinâmicas das políticas de perceção, seja no espaço urbano ou na cultura visual, através da lente da sensibilidade, questionando a forma como o regime de poder molda tanto o acesso ao espaço quanto a maneira como tomamos consciência de nós mesmos e dos outros. Ao olhar para as cidades através da lente da interseccionalidade, que pode ser entendida como um entrelaçamento de género, raça e classe, percebemos que as cidades operam como mecanismos de decisão política que, de forma invisível, escolhem e excluem. Este processo é semelhante à “mão invisível” de Adam Smith, que supostamente regula o mercado de forma benéfica, mas na verdade perpetua as desigualdades.

A pandemia evidenciou que é no espaço público, e não no privado, que se constroem tanto a alteridade quanto a identidade individual. Não se trata apenas de um salto do “eu” para o “nós”, mas de uma tomada de consciência de que a existência do “eu” só é possível através do encontro com o outro. É crucial problematizar o papel do espaço público na constituição das subjetividades consideradas “outras”, aquelas que são vistas como não-normativas. Nesse contexto, a análise de Paul B. Preciado é fundamental, pois mostra-nos que as nossas subjetividades são construídas sobre as cicatrizes desses corpos marginalizados.

A cidade deve, portanto, ser entendida como uma ferramenta político-epistemológica que espelha e difunde as narrativas do poder que a constrói. Mais do que apresentar exemplos específicos de projetos, acredito que é mais significativo que as pessoas reivindiquem e resignifiquem o espaço público, desafiando as narrativas coloniais e o controlo autoritário. É no espaço público que ocorrem as batalhas dos corpos, especialmente num momento em que o sistema, cada vez mais higienista e sob a pressão da extrema direita, tem vindo a restringir os posicionamentos críticos, limitando o acesso a esses espaços através do aparato policial. Por exemplo, as recentes manifestações antifascistas têm mostrado que a proteção estatal muitas vezes favorece o lado antidemocrático. O relatório da Amnistia Internacional, divulgado em julho de 2024, revelou que em 21 países europeus, incluindo Portugal, as autoridades policiais reprimem e punem ativistas que se manifestam de forma pacífica e dentro das regras da democracia. A história já nos mostrou os perigos de repetir esses erros.

“A interseccionalidade mostra que cada indivíduo pode ser simultaneamente afetado por múltiplas formas de opressão, como o racismo, o sexismo, a homofobia, a transfobia, a xenofobia, o classicismo, entre outros, e que essas opressões estão profundamente enraizadas em sistemas sociais e políticos”

A interseccionalidade é uma componente central da sua abordagem ao pensamento crítico e à prática curatorial. Como integra as abordagens interseccionais na sua prática curatorial e investigação académica?

A interseccionalidade é uma ferramenta analítica que permite compreender como diferentes formas de opressão, discriminação e preconceito se sobrepõem e se interconectam no nosso dia a dia. O conceito foi desenvolvido por Kimberlé Crenshaw em 1989, uma académica afro-americana, que o utilizou para descrever como as experiências das mulheres negras eram inviabilizadas dentro dos movimentos feministas e anti-racistas. A interseccionalidade mostra que cada indivíduo pode ser simultaneamente afetado por múltiplas formas de opressão, como o racismo, o sexismo, a homofobia, a transfobia, a xenofobia, o classismo. entre outros, e que essas opressões estão profundamente enraizadas em sistemas sociais e políticos. Ao pensarmos o corpo não apenas como um ente biológico, mas como um híbrido de experiências, identidades e contextos sociais, percebemos que as estruturas de poder moldam a vida de cada um de nós de maneira complexa e interligada. Esta abordagem permite desafiar as categorias obsoletas e resignificar a maneira como entendemos e abordamos as desigualdades.

“Como afirma Achille Mbembe, o museu é um lugar político. Não é apenas um espaço de preservação cultural, mas um campo de batalha onde memórias, identidades e poderes são constantemente negociados”

O debate em torno da abordagem dos museus às questões LGBTQI+ e feministas no século XXI é particularmente relevante em Portugal. Apesar de o país ter uma das legislações mais progressistas em matéria de direitos LGBTQI+ na Europa, este progressismo não se reflecte nas práticas museológicas. Como encara esta discrepância entre o progresso legislativo e a representação museológica? Que passos acredita que os museus portugueses precisam de dar para integrar melhor as perspectivas LGBTQI+ e feministas nas suas exposições e práticas curatoriais?

O que estamos a falar resulta de um problema enraizado nas estruturas sociais e culturais. Podemos ser progressistas em leis, mas o contraste entre o progresso legislativo em relação aos direitos LGBTQI+ e a representação dessas questões nas práticas museológicas reflete esse problema. Enquanto o país se destaca pela legislação progressista, o mesmo não se pode dizer da forma como essas questões são tratadas nas instituições culturais, particularmente nos museus. Essa disparidade revela um desfasamento significativo entre a teoria e a prática. Apesar do avanço, a revolução dos costumes ainda não foi plenamente realizada. As mudanças legislativas, embora necessárias, não são suficientes para transformar as estruturas culturais e sociais que moldam a prática museológica. Ao fazer parte da comunidade europeia e do contexto da globalização, o país vê-se forçado (e bem) a confrontar suas feridas históricas, muitas vezes ainda não resolvidas ou reconhecidas plenamente. Essas feridas incluem, entre outras, o colonialismo, o patriarcado e a heteronormatividade, que continuam a influenciar a maneira como as narrativas são construídas e apresentadas nos espaços culturais. Como afirma Achille Mbembe, o museu é um lugar político. Não é apenas um espaço de preservação cultural, mas um campo de batalha onde memórias, identidades e poderes são constantemente negociados. No entanto, o funcionamento e a economia dos museus em Portugal não foram suficientemente questionados ou reformados para refletir as mudanças sociais e políticas que têm ocorrido. As práticas curatoriais muitas vezes permanecem cristalizadas em tradições que resistem à inclusão de perspetivas LGBTQI+, feministas e anti-racistas.

“O Coletivo FACA formado em 2019 é um projecto de cidadania activa, tendo como núcleo duro eu e a Andreia Coutinho, sendo um projecto de curadoria e cidadania activa questionamos as narrativas da cultura visual”

Apesar da presença significativa de mulheres nos movimentos artísticos de vanguarda, estas permanecem frequentemente sub-representadas na história da arte. Como explica esta sub-representação persistente e que mudanças são necessárias para garantir que as contribuições das mulheres sejam plenamente reconhecidas e valorizadas na narrativa histórica da arte?

Com as razões que dei na resposta anterior, a sub-representação das mulheres na história da arte tem raízes nas mesmas dinâmicas que afetam a representação LGBTQI+ e de pessoas racializadas nos museus. Historicamente, a narrativa da cultura visual foi dominada por perspetivas patriarcais que marginalizaram ou apagaram as contribuições das mulheres e destes grupos. Mesmo nos movimentos de vanguarda, onde as mulheres desempenharam papéis significativos, as suas obras foram relegadas para o segundo plano.

Como cofundadora do Coletivo FACA, participa em projectos de curadoria e de cidadania ativa. Quais são os principais objectivos do Coletivo FACA? Pode descrever um projeto ou iniciativa específica que exemplifique o impacto e a abordagem do coletivo?

Formado em 2019, o Coletivo FACA é um projeto de cidadania ativa, tendo como núcleo duro eu e a Andreia Coutinho, e sendo um projeto de curadoria e cidadania ativa questionamos as narrativas da cultura visual. Pensamos acerca das temáticas do feminismo, do colonialismo, do racismo, da comunidade LGBTQI+ e da não-normatividade em geral em espaços museológicos e culturais. Todas estas questões têm a mesma raiz: um preconceito em relação àquilo que não é igual a nós, fazendo-nos sentir ameaçados, ramificando-se em temas considerados marginais. Para nós torna-se urgente recontar a História, porque a narrativa predominante não coincide com as narrativas individuais e coletivas, que sempre foram desconsideradas. Tendo em conta que estas ideias estão a ser desenvolvidas internacionalmente, trazemos as discussões para o debate cultural português contando com público especializado e não especializado. Não apagando a História, cruzamos as diversas narrativas, puxando as margens para o centro do debate.

As nossas abordagens passam por criar atividades em que fomentamos a discussão e o debate, tornando o desconforto confortável, desde cursos a formação de professores, passando pela curadoria expandida com o projeto DES/CODIFICAR BELÉM, financiado pela DGArtes e tendo como parceiros o Museu de Arte Contemporânea do CCB e o Maat. Pretendemos com este projeto olhar para a cidade através do diálogo entre três artistas e um grupo interseccional de jovens queer para entender as tensões existentes na constituição da sua subjetividade espacial e para criar uma intervenção no espaço público por parte dessas artistas que funcionam como dispositivos para fazer ver, falar e mostrar as tensões inerentes a Belém, cruzando reflexão com ação consciencializadora, como Paulo Freire coloca. Ou seja, visamos uma consciencialização crítica do espaço e a partir daí a possibilidade de tomada do espaço e transformação do mesmo sob novas perspetivas e presenças. A escolha de Belém como espaço de investigação coletiva e criação crítica deve-se à fisicalidade de uma narrativa de sentido único na sociedade portuguesa e do seu papel histórico nesta zona, desde a simples toponímia e a nomenclatura dos edifícios a elementos gráficos presentes na decoração do espaço público, que ainda é absorvida de forma acrítica pelas pessoas que usufruem dessa área, seja por lá viverem ou a visitarem. As artistas convidadas foram Gisela Casimiro, Rod Saturnino e Hilda de Paulo.

“A descolonização do pensamento, e neste caso da arte é um processo importante que exige a resignificação das narrativas hegemónicas e a criação de um espaço para as vozes e práticas artísticas que historicamente foram marginalizadas ou silenciadas”

O processo de descolonização da arte implica repensar e desafiar as narrativas e as estruturas de poder estabelecidas no mundo da arte. Na sua perspetiva e experiência curatorial e académica, quais são as principais estratégias e metodologias que podem contribuir eficazmente para a descolonização da arte? Pode dar exemplos de projectos ou iniciativas específicas que tenham abordado esta questão com sucesso?

A descolonização do pensamento, e neste caso da arte, é um processo importante que exige a resignificação das narrativas hegemónicas e a criação de um espaço para as vozes e práticas artísticas que historicamente foram marginalizadas ou silenciadas. Este é um processo contínuo e multifacetado, que exige uma reavaliação constante das práticas políticas, sociais e narrativas que moldam o mundo da cultura. Para tal, é necessária uma reavaliação das coleções públicas de forma crítica: os museus e as galerias terão de se olhar ao espelho e questionar a origem dos seus artefactos e obras artísticas, e a forma como foram adquiridos. O que poderá incluir a sua devolução aos países de origem. Implementação de curadorias comunitárias e colaborativas, que envolvam de forma ativa e recetiva as comunidades marginalizadas pelo sistema e o reforço de artistas de contextos tidos como dissidentes e de países que foram colonizados, permitindo a sua incorporação sem tokenismo, ou seja, sem fetichização e romantização do outro. Promover atividades e programações educativas que desafiem o pensamento dominante e as tradições eurocentradas da história da arte.

“A mudança deve ser tanto interna quanto externa: não basta reconfigurar as instituições sem uma mudança genuína nas mentalidades e nas redes de afectividade das pessoas que as compõem”

Olhando para o futuro, quais são, na sua opinião, os principais desafios e oportunidades para a integração de perspectivas queer, feministas e anti-racistas no mundo da arte contemporânea? Como podem artistas, curadores e instituições colaborar para promover uma maior consciencialização e mudança social relativamente a questões de preconceito, discriminação e desigualdade?

O principal desafio para a integração de perspetivas queer, feministas e anti-racistas na arte contemporânea é a inércia das estruturas educacionais e culturais existentes. Mesmo que os currículos e programas sejam atualizados, o facto de que muitos dos professores e profissionais da cultura permanecem os mesmos significa que as mudanças serão gradativas e poderão enfrentar resistências internas, ou seja, significa que os mecanismos internos e sistémicos, e as formas de pensar os preconceitos, não mudarão radicalmente. Este é um trabalho lento e árduo. Essa transformação não ocorre apenas através da revisão de conteúdos, exige também uma profunda reeducação das atitudes e dos afetos. A ativista e poeta Audre Lorde alertou-nos que “as ferramentas do mestre nunca desmantelarão a casa grande”, o que sublinha a necessidade de estratégias inovadoras e radicais para criar mudanças reais. Isso envolve resignificar as nossas relações interpessoais e a maneira como reagimos às injustiças. A mudança deve ser tanto interna quanto externa: não basta reconfigurar as instituições sem uma mudança genuína nas mentalidades e nas redes de afetividade das pessoas que as compõem.

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