Manuel Maria Rodrigues

Manuel Maria Rodrigues

“A sociedade portuguesa não conseguiu ainda, apesar de uma vivência de 50 anos em democracia, libertar-se de estigmas e fantasmas de um passado extremamente pesado que o anterior regime de ditadura cravou naqueles que o vivenciaram”

Na edição inaugural do Festival Impacto, pretendemos abordar de forma transversal o tema Preconceito – um fenómeno moldado por noções preconcebidas e não por análises inspiradas em factos empíricos. Hoje com esta entrevista exploramos a intersecção do preconceito com o crime, a justiça e a segurança, um tópico de profundo significado no mundo actual. Para nos guiar nesta discussão, temos o privilégio de conversar com Manuel Maria Rodrigues, uma pessoa reconhecida pela sua experiência prática na área da investigação criminal.

Licenciado em Relações Internacionais pela UAL – Universidade Autónoma de Lisboa e Mestre em Direito e Segurança pela Universidade Nova de Lisboa, Manuel Maria Rodrigues dedicou 33 anos de serviço efetivo à carreira de Investigação Criminal da Polícia Judiciária.

A sua vasta experiência é ainda complementada em metodologias de investigação criminal, gestão estratégica de crises e tácticas de contra-terrorismo, através do seu vasto portfólio e formação ministrados por instituições de renome, tal como, a Royal Hong Kong Police Force e a New Scotland Yard.

Para além da sua extensa carreira no âmbito da aplicação da lei, as contribuições de Manuel Maria Rodrigues como comentador e colunista no domínio da justiça e da segurança proporcionam um contexto inestimável para examinar o papel dos meios de comunicação social na formação do discurso público sobre o crime e o preconceito. Desde a análise do discurso de ódio ao confronto com a culpabilização das vítimas, as suas perspectivas oferecem-nos reflexões críticas sobre os desafios e as oportunidades para promover uma maior equidade, empatia e responsabilidade na nossa sociedade.

Com a sua formação académica em Relações Internacionais e a sua extensa carreira de investigação criminal na Polícia Judiciária, como relaciona crime e preconceito? E como é que o preconceito se cruza com outros factores, como o estatuto socioeconómico ou a ideologia política, para influenciar o envolvimento em crimes violentos ou actividades terroristas?

A sociedade portuguesa não conseguiu ainda, apesar de uma vivência de 50 anos em democracia, libertar-se de estigmas e fantasmas de um passado extremamente pesado que o anterior regime de ditadura cravou naqueles que o vivenciaram.

Parecendo a referência anterior fora de contexto, ela ganha consistência se recordarmos uma sociedade em que os níveis de alfabetização eram diminutos, em que a mulher não tinha direitos, nem sequer de voto, em que o homem era o denominado “chefe de família” e como tal quem impunha as regras, em que eram raras as mulheres que trabalhavam fora de casa e apenas desempenhando determinadas funções ligadas sobretudo ao ensino de crianças, à enfermagem ou cuidando de idosos.

Como a cultura era sobretudo direcionada para o entretenimento e diversão do povo, controlada através de uma censura proibitiva e punitiva dos infratores, toda a atividade artística, o teatro, a literatura, a música, nada podia conter de crítico, de desafiante, de evolutivo, de contestatário, sobretudo em relação ao governo, à família ou à religião.

Neste contexto não é de estranhar que em Portugal o preconceito exista, sobretudo nas vertentes social, racial, de gênero e religioso.

Não é possível desvalorizar essa herança do passado que se traduz numa sociedade dividida entre uma minoria de ricos e poderosos e uma maioria populacional pobre, iletrada e profundamente dependente da oportunidade de emprego, por sua vez escasso e mal pago. Nem tão pouco podemos esquecer que a maioria da nossa população masculina, hoje com mais de 65 anos idade, foi forçada a combater numa guerra colonial “Combater em defesa da Pátria”, que não entendiam, talvez por não verem a pátria a ser atacada por nenhum dos povos africanos que diziam ser os nossos inimigos.

Muito se matou e muito se morreu em terras de África!

No fim, uma descolonização apressada, atabalhoada e catastrófica, veio acentuar ainda mais o antagonismo e ódio racial. O despojar de bens, os massacres, as perseguições, a fuga apressada, o deixar tudo para trás deixou marcas profundas e deu origem a uma nova classe de portugueses denominados de retornados.

Todos estes fatores contribuíram para o surgimento de preconceitos que se transmitiram à geração seguinte e perduram até aos dias de hoje.

Quando na década de 80 do século passado, Portugal começou a incentivar e a receber mão de obra barata oriunda das antigas colónias, deu início a um processo de proliferação de bairros sociais periféricos, amontoando esses trabalhadores em condições mínimas de habitação e integração social. O preconceito racial e social esteve sempre presente e foi-se acentuando com o passar do tempo e o surgimento de uma geração de descendentes da primeira leva, nascidos já em Portugal e cuja inadaptação social, escolar, cultural, foi germinando e tornando cada vez mais evidente. Nem podia ser de outra maneira, porque as condições que lhes foram dadas caminharam sempre de mãos dadas com a miséria, com os fracos recursos económicos, com a ausência de valores, nomeadamente de empatia com o próximo e de valoração da vida.

Uma franja dessa juventude inadaptada, encontrou no bairro, na rua, no gang, o suporte e reconhecimento que a falta de estrutura familiar não consegue dar.

Torna-se óbvio que a senda do crime lhes surge como a oportunidade de obter rapidamente aquilo que, a estudar e depois a trabalhar, demorará anos a conseguir se todo o processo decorrer sem percalços.

De um modo resumido estes são os fatores que impelem a juventude rebelde ou inadaptada, à opção pelo crime ou por aderência a processos de radicalização quando o sentimento de revolta é alimentado pela aderência a ideologias políticas cujo conteúdo assenta na violência extrema, no fanatismo religioso, em projetos extremistas de controlo de outros povos e culturas.

O preconceito neste cenário centra-se numa abusiva leitura abrangente dos grupos sociais em causa, julgando-os como um todo, com atitudes comportamentais generalizadas. Exemplo:

                                É Árabe, logo… terrorista,

                                É Muçulmano, logo… terrorista,

                                É preto, vive na Amadora, logo… bandido

                                É cigano, logo… burlão

“As medidas de formação necessárias para abordar e mitigar possíveis preconceitos, a fim de garantir um tratamento justo e equitativo de todos os indivíduos no âmbito do sistema de justiça penal, passam, na minha opinião, essencialmente pela vertente educacional”

Como pensa que os preconceitos, conscientes ou inconscientes, podem afetar os profissionais da polícia nas suas interacções com o público e nos seus processos de tomada de decisão? Que medidas ou formação existem ou considera necessárias para abordar e mitigar possíveis preconceitos, a fim de garantir um tratamento justo e equitativo de todos os indivíduos no âmbito do sistema de justiça penal?

A atuação da polícia junto do público, com especial ênfase junto de bairros pobres, ou periféricos ou considerados perigosos, é objeto de um controlo rigoroso e permanente por parte de instâncias com competências para a fiscalização procedimental.

É do conhecimento geral, cingindo-nos apenas aos últimos anos, que várias intervenções ocorridas em bairros sociais periféricos resultaram em populares feridos, consequência de bastonadas ou disparos de balas de borracha utilizadas normalmente no controlo de motins. Mas também não será despiciente lembrar que polícias foram vítimas de agressões por populares ou gangs organizados ou caíram em emboscadas acabando apedrejados ou atingidos por disparos de armas de fogo.

Em teoria todo o cidadão é tratado de igual forma. Na realidade isso não acontece. Parece óbvio que qualquer elemento policial não atua da mesma forma numa zona urbana sensível, em que cada passo tem de ser meticulosamente medido e se encontra em estado de alerta permanente, ou numa rua/avenida do centro da cidade, onde o nível de risco é claramente mais baixo.

Esse tratamento igualitário não acontece na atuação policial, nem na forma como a justiça trata ricos e pobres, nem como a sociedade trata e se relaciona com moradores dos bairros sociais comparativamente com residentes em condomínios privados. Pode ferir suscetibilidades, mas é a verdade nua e crua.

Se quisermos ser intelectualmente honestos constatamos que diariamente se verificam violações aos Direitos e Deveres Fundamentais consignados na CRP, nomeadamente:

O Princípio da Igualdade (artº 13), – Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.

Direito a habitação (artº 65) – todos têm direito, para si e sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.

Acesso ao Direito e aos Tribunais (artº20) – n.1 A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais (……) não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.

n 5 – Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efetiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos.

E para finalizar esta série de exemplos, atrevo-me a salientar a oposição evidente entre a intenção do legislador e o resultado efetivo verificado, embora dissimulado, do Princípio fundamental que regula a Organização Económico-Social e cuja primeira alínea plasma “subordinação do poder económico ao poder político (artº 80)”.

Recentrando o tema, é difícil, ou mesmo impossível, afirmar que operações policiais desenvolvidas em bairros ou zonas consideradas perigosas ou problemáticas, nas quais por vezes se impõe o recurso a uma atuação mais musculada, implique uma componente preconceituosa, consciente ou inconsciente.

Na realidade, todo o polícia recebe formação no sentido de respeitar a dignidade humana e tratar o público de igual forma em qualquer circunstância.

Trazer para equação recalcamentos do passado ou intenções de tratamento diferenciado em razão da cor da pele, do gênero, da origem, parece-me um falso argumento. Não existem hoje, no ativo, polícias que tenham cumprido serviço militar em África. Passaram 50 anos desde o fim da guerra colonial. Os jovens que tinham na altura 20 anos de idade, terão hoje 70 e como tal, estarão reformados. Se o preconceito racial servia como argumento para qualquer atitude mais violenta na atuação policial, penso tratar-se de um argumento falso nos dias de hoje, ou para ser mais preciso de um preconceito.

No entanto uma outra realidade existe e aparentemente passa despercebida ou varrida para debaixo do tapete para evitar que seja discutida. Uma parcela significativa de candidatos ao ingresso nas forças e serviços de segurança são oriundos de bairros periféricos. Na grande Lisboa por exemplo, a margem sul do Tejo e as zonas limítrofes da Amadora, a linha Sacavém/Vila Franca de Xira e outras, são zonas onde coexistem bairros dormitórios da classe média com bairros pobres, outros de construção ilegal, extremamente populosos e de onde, como dizia, surge um elevado número de candidatos.

Se considerarmos que é precisamente nessas zonas que se formam a maior parte dos grupos organizados de jovens delinquentes, que emerge um tipo de criminalidade violenta que se entrecruza com o tráfico, que nas escolas se sucedem inúmeros incidentes rácicos, de intimidação, sistémica ou não, de afirmação da lei do mais forte, de delinquência juvenil em muitos casos organizada.

Se destes universos saírem candidatos às forças de segurança, que tomaram conhecimento ou vivenciaram experiências traumatizantes ou de vitimização, é um processo natural, embora possa ser considerado não aceitável, que transportem consigo as marcas dessas experiências de infância ou juventude. A grande dificuldade é saber se estes elementos conseguem lidar ou não com essas marcas, e se as mesmas se refletirão no seu desempenho profissional.

As medidas de formação necessárias para abordar e mitigar possíveis preconceitos, a fim de garantir um tratamento justo e equitativo de todos os indivíduos no âmbito do sistema de justiça penal, passam, na minha opinião, essencialmente pela vertente educacional e de ensino primário.

É em casa, no seio da família, que os alicerces dos principais princípios e valores que irão nortear o comportamento futuro, enquanto jovens e adultos, terão de ser solidamente construídos. É na família que deverão primeiramente ser abordados e mitigados quaisquer sinais de comportamentos preconceituosos.

Depois, será o ensino primário a aplicar camada de massa seguinte, que irá cimentar o relacionamento entre colegas, sem diferenciação de origem, raça, cor de pele, sexo, além de abrir horizontes de respeito, igualdade e não-violência. Na minha perspetiva, a falha desta teoria centra-se no facto de nem todos os grupos sociais educarem e formarem as suas crianças dentro dos mesmos parâmetros.

A garantia de um tratamento justo e equitativo de todos os cidadãos no âmbito do sistema de justiça penal é necessária e fundamental. Mas resulta utópica enquanto houver uma justiça que permite às elites um excesso de garantismo através de recursos só ao alcance de alguns e impede ao cidadão médio o acesso a uma justiça dispendiosa, lenta e muitas das vezes ineficaz por via do tempo decorrido entre a prática dos factos e a decisão do tribunal. Não é uma justiça preventiva, nem reparadora, nem tão pouco, inibidora da prática de novos ilícitos criminais. A própria justiça alimenta o clima de preconceito contra ricos, políticos, gestores, banqueiros e outras elites, levando a população ao descrédito nas instituições, ao crescimento de um sentimento de impunidade, à criação de um juízo abrangente e errado de…são todos iguais.

Apenas com uma Justiça célere, eficaz e com tribunais exemplares (incluindo os superiores), em termos de decisões sábias, irrepreensíveis e de fácil entendimento para o cidadão médio, será possível garantir um tratamento justo e equitativo de todos os indivíduos.

“Uma das iniciativas que mais efeito provoca nas camadas mais jovens tem sido o contacto direto das polícias com as escolas, concretamente nas salas de aulas, dando-se a conhecer, falando com os alunos sobre perigos vários como por exemplo; derivados do consumo de estupefacientes, do álcool, da internet, da Intimidação Sistémica (vulgarmente designada por bullying) nas suas diversas vertentes, e outras questões levantadas espontaneamente pelos alunos que, de uma forma ou outra, os preocupam”

No que diz respeito às recentes iniciativas destinadas a promover a cidadania, as relações de vizinhança, a segurança e uma maior participação da comunidade para aumentar a confiança entre a polícia e a população, que estratégias específicas se revelaram eficazes para colmatar as divisões e fomentar interacções positivas entre as forças policiais e a comunidade? Como é que estas iniciativas abordam as causas profundas da desconfiança e (também) do preconceito da comunidade para com as forças policiais?

É imprescindível termos presentes que desde há largos anos até aos dias de hoje as polícias evoluíram em termos de relacionamento com as comunidades. Para tal contribuiu em larga escala o acréscimo de exigência em termos de grau escolar, a formação específica dada desde o ingresso nas escolas de polícia para capacitação funcional e, por outro lado, os inúmeros programas postos em prática e que visam uma aproximação da polícia às populações. Em concreto, acautelar e proteger setores diferenciados da comunidade, atendendo a especificidades próprias das populações, escalões etários, vertentes de atividade e necessidades.

Essa estratégia insere-se numa das vertentes fundamentais dentro das competências policiais, ou seja, o Policiamento de Proximidade e contempla programas tais como:

“Programa Apoio 65 – Idosos em Segurança”, “A Solidariedade Não Tem Idade”, “Apoio a Pessoas com Deficiência”, “Comércio Seguro”, “Programa Farmácia Segura”, “Programa Escola Segura”, “Universidade em Segurança”, “Residência Segura”, “Não-violência contra a Mulher”, “Investigação e Apoio a Vítimas Específicas”, “Apoio ao Turista”, e ainda, ”Conselhos Municipais de Segurança”, “Contratos Locais de Segurança”, “Comissão Proteção de Crianças e Jovens em Risco”.

 Estes programas, para além de promoverem uma resposta mais célere e especializada a situações específicas, contribuem para aproximar a polícia do cidadão e vice-versa, humanizar a polícia, quebrar barreiras oriundas do passado e neste contexto demonstrar na prática às populações que…

«as polícias fazem parte da solução e não do problema».

Uma das iniciativas que mais efeito provoca nas camadas mais jovens tem sido o contacto direto das polícias com as escolas, concretamente nas salas de aulas, dando-se a conhecer, falando com os alunos sobre perigos vários como por exemplo; derivados do consumo de estupefacientes, do álcool, da internet, da Intimidação Sistémica (vulgarmente designada por bullying) nas suas diversas vertentes, e outras questões levantadas espontaneamente pelos alunos que, de uma forma ou outra, os preocupam. 

Com base na sua experiência como comentador e colunista na área de justiça e segurança, como é que a representação mediática tem influenciado a percepção pública sobre a intersecção entre crime e preconceito? Há casos em que a cobertura mediática tenha exacerbado ou atenuado preconceitos sociais?

Desde sempre os órgãos de comunicação social influenciaram a opinião pública. Se assim não fosse, não assistiríamos a tentativas de controlo, algumas delas amplamente denunciadas, bem como, à tentativa de aquisição de jornais ou canais de televisão, por parte de grupos económicos com elevada capacidade económica, ou mesmo, por parte de governos.

O controlo de um canal televisivo ou de um jornal, pode transformá-lo num veículo conduzido remotamente numa direção predestinada.

Todos conhecemos títulos de jornais que desempenharam em certos momentos da nossa história, papéis fundamentais na propagação de doutrinas partidárias, ou espectros políticos, ex:

“Avante” – órgão do Partido Comunista Português (PCP),

“A Luta Popular” – Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado (MRPP),

“Voz do Povo” – União Democrática Popular (UDP),

 “A Luta” – Socialista,

“Esquerda Socialista” – Movimento de Esquerda Socialista (MES),

“POVO LIVRE” – Partido Popular Democrático (PPD),

“TEMPO” – assumidamente de Direita, ou

 “O DIABO” – semanário que ainda hoje se publica, surgiu como independente e era considerado manifestamente uma publicação de direita, por muitos até, de extrema-direita.

 Atualmente a luta por uma imprensa livre, isenta, rigorosa e independente, assume-se como um exercício diário levado a cabo por inúmeros jornalistas e comentadores, bem como, há que assumi-lo, por algumas direções editoriais… infelizmente, poucas. Dizer o contrário seria um preconceito errado, uma injustiça para aqueles que exercem as suas funções com elevada idoneidade e profissionalismo.

Claro que existem casos em que a cobertura mediática influência, positiva ou negativamente, atenuando ou exacerbando, preconceitos sociais. Se quisermos e sem receio da polémica que a questão possa suscitar, saliento a título de exemplo, a disseminação mundial, julgo não exagerar, da mensagem pretendida passar pelo movimento Me Too.

Trata-se como é do conhecimento geral, de um movimento que se propagou como um vírus em outubro de 2017 através das redes sociais, rapidamente alastrado aos órgãos de comunicação social, visando demonstrar a prevalência generalizada de agressão sexual e assédio, essencialmente nos locais de trabalho.

A partir desse momento, as denúncias relatando casos de assédio, alguns ocorridos há 30 anos, impossíveis de comprovar, começaram a chegar ao conhecimento público.

Abordar este tema no sentido de o aprofundar resulta tarefa praticamente impraticável sem que seja entendido pôr em causa o teor das denúncias ou a credibilidade das vítimas. Isso é preconceito puro! Um juízo generalizado falso!

Em sentido oposto, olhar para o meio onde uma parte significativa destes casos ocorreram, o meio artístico, das grandes figuras do cinema, atores e realizadores, da música clássica, dos meios financeiros e dizer-se que são todos iguais, é cometer o mesmo erro…preconceito puro.

Conclui-se assim que a cobertura mediática, principalmente quando alimentada por movimentos organizados e potenciando, conscientemente ou não, a sua estratégia de propaganda, pode dar uma visibilidade exacerbada e servir interesses concretos. Atuando dessa forma a imprensa obtém ganhos avultados face à popularidade dos protagonistas, com capas sugestivas ou abertura de telejornais, mas afasta-se de valores imprescindíveis como o rigor e a ética.

“discurso de ódio “…” é um reflexo dos tempos que vivemos, da atração que nos últimos anos as redes sociais têm vindo a exercer sobre o mundo moderno, particularmente sobre as camadas jovens, e ainda, o resultado da facilidade de omitir opiniões, muitas sem fundamento científico, académico ou baseadas em dados reais e comprovados”

Como encara o impacto do discurso de ódio cada vez mais presente nas redes sociais e em alguns discursos políticos na perpetuação de narrativas que retratam os migrantes como ameaças e os associam ao terrorismo e à criminalidade?

Julgo tratar-se de um problema que não tem uma resposta direta ou dependente de um único fator. Na minha opinião são vários os fatores que contribuem quer para o impacto do discurso de ódio, como para a perpetuação no tempo de narrativas que assumem o migrante como ameaça.

Em primeiro lugar e não por ordem de importância, é um reflexo dos tempos que vivemos, da atração que nos últimos anos as redes sociais têm vindo a exercer sobre o mundo moderno, particularmente sobre as camadas jovens, e ainda, o resultado da facilidade de omitir opiniões, muitas sem fundamento científico, académico ou baseadas em dados reais e comprovados. Falamos de um meio com controlo muito deficitário e onde é fácil, dissimular a verdadeira identidade de quem publica ou manter o anonimato.

Acresce a este mundo tecnológico e cibernético, já de si complexo, a existência da darkweb, ou seja, a internet obscura, não indexada a mecanismos de busca comuns, na qual se encontra um manancial de conteúdos, muitos deles ilegais, como pornografia ilegal e violenta, terrorismo, ou tráficos diversos. Os criminosos utilizam a darkweb por ser encriptada e, por isso, difícil de rastrear.

Grande parte dos processos de radicalização de ocidentais a grupos terroristas extremistas e radicais, faz-se através da darkweb, possibilitando a esses grupos angariar operacionais, cativar simpatizantes, difundir a sua propaganda, manipular mentes problemáticas, com vista a engrossar as suas fileiras.

Desde o 11 de Setembro de 2001, o mundo sofreu alterações significativas, quer no tocante à segurança global, quer na forma como o mundo ocidental passou a olhar para os países árabes ou onde a religião muçulmana e mais concretamente o fanatismo religioso impera.

Coincidentemente, a grande vaga de migração oriunda de alguns países árabes, africanos e asiáticos, resultado de conflitos internos, de secas intermináveis, da ação exterminadora de grupos terroristas ou simplesmente da escassez de recursos, ganhou uma proporção alarmante, sendo o mediterrâneo o exemplo mais dramático, real e visível para os europeus.

Portugal aderiu à perspetiva humanitária de abrir as suas portas de par em par ao fenómeno da migração. A grande questão é que não tem nem nunca teve uma política de migração minimamente pensada. Acolhe sem acolher, controla de forma incontrolável (nem sequer sabemos quantos migrantes existem atualmente em Portugal), desconhece a verdadeira identidade de centenas de migrantes que entram no país indocumentados, não existindo forma de comprovar a sua identidade. Em muitos casos nem sequer sabe de onde são originários. Permite que se amontoem em quartos espalhados pelos bairros pobres das principais cidades, ou que acampem em tendas nas ruas e jardins, sem o mínimo de condições de subsistência humana.

Apesar do discurso político, não se combate eficazmente as redes de tráfico humano que obtêm lucros avultados à custa da desgraça humana e, aparentemente, a única coisa que importa ao governo português é o crescente manancial de mão-de-obra barata e o aumento de natalidade, deixando para um plano secundário as condições de dignidade que todos devemos ter como assegurada conforme o previsto na CRP.

É sabido que os dados oficiais não referem uma relação direta entre o fluxo de migrantes e o aumento de criminalidade. O facto é que o conhecimento público de narrativas quase diárias referentes a incidentes ou crimes em que os intervenientes são oriundos de países cujo fluxo de migração tem vindo a aumentar, produz nos portugueses um sentimento de insegurança e de repulsa contra este aumento desregrado de migração, estando na origem do aproveitamento por parte de partidos ou movimentos conotados com a extrema-direita e fervorosamente propagados através de discursos rácicos e xenófobos.

É curioso que o discurso político tende a desvalorizar os perigos e ameaças que uma migração excessiva comporta porque ela serve os seus propósitos já anteriormente enunciados de mão-de-obra barata e índices de natalidade, mas o sentimento da população em geral aponta em sentido inverso e a opinião generalizada é de que este fenómeno devia obedecer a políticas rigorosas em termos de fiscalização, integração, acompanhamento, preocupando-se mais com os aspetos de dignidade humana e também de segurança interna.

“Nem sempre a Justiça consegue comprovar que um discurso público ou uma publicação nas redes sociais produziu um resultado concreto de violência discriminatória, racista ou xenófoba. Os atos de violência podem vir a ocorrer 15 dias ou 1 mês após o discurso ou a publicação ser produzida, não sendo possível estabelecer a necessária causa/efeito. Talvez esta seja uma das razões pela qual são escassas as condenações efetivas pela prática deste tipo de crime.”

Em que medida é que o nosso país dá prioridade ao reconhecimento e resposta aos crimes de ódio e qual a eficácia com que aborda a sua importância no quadro mais alargado da segurança e da justiça? E que mecanismos institucionais e sociais estão em vigor para identificar, acompanhar e responder a crimes motivados pelo ódio?

 É justo reconhecer que o quadro legislativo existente em Portugal para prevenir e punir dos crimes de ódio não deixa dúvidas quanto à não aceitação de tais práticas e à necessidade da sua erradicação.

Refira-se como ponto de partida que o crime de incitamento ao ódio e à violência, é punido com uma pena de prisão de 6 meses a 5 anos (artº 240 nº 2 do Código Penal).

As condutas são igualmente puníveis se realizadas em espaço público ou divulgadas através das redes sociais ou sítios Web.

A lei exige que estas condutas tenham como pressuposto a apologia, negação ou banalização grosseira de crimes de genocídio, guerra ou contra a paz e humanidade. Exige ainda que tenham um efeito ou resultado discriminatório concreto, traduzido na provocação de atos de violência, na prática de crimes de injúria ou difamação, na ameaça e no incitamento à violência ou ódio contra «pessoa ou grupo de pessoas por causa da cor, raça, origem étnica ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou psíquica»

O tribunal pode ordenar a eliminação dos dados informáticos ou conteúdos nº3 do art. 240 CP.

Nem sempre a Justiça consegue comprovar que um discurso público ou uma publicação nas redes sociais produziu um resultado concreto de violência discriminatória, racista ou xenófoba. Os atos de violência podem vir a ocorrer 15 dias ou 1 mês após o discurso ou a publicação ser produzida, não sendo possível estabelecer a necessária causa/efeito. Talvez esta seja uma das razões pela qual são escassas as condenações efetivas pela prática deste tipo de crime.

Simultaneamente, convirá não esquecer que, para que a Justiça atue é necessário que o Ministério Público acione o respetivo inquérito, por iniciativa própria ou na sequência de queixa.

A Constituição da República Portuguesa, pugna, como já referi em anterior resposta, pela igualdade entre os cidadãos, pelos seus direitos liberdades e garantias. O art. 13º Princípio da Igualdade, plasma taxativamente que:

«Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei»,

Especificando no nº2:

«Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão da ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual».

 Acrescente-se a Lei 3/2024, que Cria a Comissão para a Igualdade e contra a Discriminação Racial e que veio alterar a Lei 93/2017 que estabelece o regime jurídico da prevenção, da proibição e do combate à discriminação, em razão da origem racial e étnica, cor, nacionalidade, ascendência e território de origem.

Neste momento e também devido à informatização do sistema, é possível ter uma ideia mais clara sobre o panorama inerente aos crimes de ódio em Portugal.

Assim e com base nos números oficiais sabe-se que entre os anos de 2020 e 2023 deram entrada 792 Inquéritos.

No mesmo período foram arquivados 630 inquéritos.

Sabe-se também que destes 792 inquéritos apenas 14 tiveram despachos de acusação.

No ano de 2021, apenas 3 inquéritos foram objeto de despacho de acusação,

No ano de 2022 também 3 inquéritos foram objeto de despacho de acusação

No ano de 2023 entraram 347 inquéritos e apenas 5 tiveram despacho de acusação.

Em 2023 registou-se um aumento de 38% de crimes de discriminação e incitamento ao ódio (+77 crimes do que em 2022).

Numa perspetiva internacional, Portugal ocupa atualmente a 11ª posição no ranking anual da ILGA – Intervenção Lésbica, Gay, Bixessual, Trans e Intersexo.

Outro número que merece reflexão refere-se ao aumento dos crimes de ódio em 35 dos 54 países que participam nesta análise.

As instâncias europeias incentivam os diversos países ao incremento da formação das suas polícias, bem como, dos professores, no sentido de uma preparação mais específica nesta matéria, capacitando-os para atuar no sentido de, em ambiente escolar, combaterem comportamentos que conduzam ou traduzam manifestações de ódio ou discriminação entre alunos.

Se a estas medidas se adicionar uma educação adequada em casa, como já referi anteriormente, estaremos todos a contribuir para a construção de uma sociedade sem preconceitos de qualquer espécie.

Em termos de conclusão da resposta, julgo que fica demonstrado que Portugal está empenhado no combate e eliminação dos crimes de ódio. No entanto, a conjuntura mundial, assoberbada de fenómenos nocivos com guerras, fluxo de migração excessiva e problemas climáticos cuja influência é muitas vezes direta no agravamento desses fenómenos, dificulta a resolução desta questão.

Por outro lado, a Justiça em Portugal sofre das deficiências já salientadas anteriormente e os resultados práticos ficam analisando os dados expostos, muito aquém do desejável.

Todos temos, continuamente, de contribuir para a construção de um mundo sem crimes de ódio, independentemente da causa que lhe está subjacente.

“As instâncias europeias incentivam os diversos países ao incremento da formação das suas polícias, bem como, dos professores, no sentido de uma preparação mais específica nesta matéria, capacitando-os para atuar no sentido de, em ambiente escolar, combaterem comportamentos que conduzam ou traduzam manifestações de ódio ou discriminação entre alunos.

Se a estas medidas se adicionar uma educação adequada em casa, como já referi anteriormente, estaremos todos a contribuir para a construção de uma sociedade sem preconceitos”

Como podemos combater e confrontar eficazmente a prática nociva da culpabilização das vítimas, especialmente prevalecente em casos de crimes de ódio ou de género, em que as vítimas são injustamente responsabilizadas pelo seu próprio sofrimento? Que medidas proactivas podem ser tomadas para promover uma cultura de apoio e responsabilidade para com as vítimas, assegurando que estas não são ainda mais marginalizadas ou estigmatizadas pela perceção pública?

É um caminho complexo no qual acima de tudo a formação pessoal e coletiva assume grande preponderância. É óbvio que podemos considerar que o nível cultural, bem como, uma sociedade evoluída e economicamente próspera terá grande influência. No entanto a realidade mostra-nos que mesmo em países mais evoluídos estes fenómenos existem contrariando as teses que apontam no sentido de os denominados países ricos, serem oásis onde o preconceito e o crime são inexistentes.

Comecemos pelo aspeto que se interliga com o caminho, sem dúvida penoso, percorrido pela comunidade gay em Portugal, criticada, perseguida e marginalizada no anterior regime, obrigando à ocultação, quer da família, como da sociedade, das tendências sexuais.

“Ninguém pode sentir-se responsável ou culpabilizar-se por ser vítima de um crime de ódio ou de género. Interiorizar que o crime aconteceu porque a vítima teve a culpa, porque provavelmente não procedeu de forma correta, porque devia ter escondido a sua tendência sexual, porque não devia vestir-se de determinada maneira, é o pior caminho que cada vítima pode permitir-se seguir, mas no qual, inconscientemente, em muitos casos, entra.”

Com o 25 de Abril o panorama sofreu grande alteração e aos poucos, com o decorrer do tempo, a comunidade gay começou a assumir-se publicamente, até que nos dias de hoje, pese embora continuem a existir queixas contra atos discriminatórios ou crimes de género, é evidente a aceitação da homossexualidade masculina ou feminina, nas empresas, nas escolas, nos ministérios.

No entanto, continua a existir em muitos casos o drama da culpabilização da vítima, pela família, pela pessoa com quem se mantém um relacionamento, pelos amigos, pela sociedade.

Paralelamente, mas num plano pessoal, a própria vítima entra por vezes num processo de auto culpabilização cujo desfecho pode ser imprevisível.

Ninguém pode sentir-se responsável ou culpabilizar-se por ser vítima de um crime de ódio ou de género. Interiorizar que o crime aconteceu porque a vítima teve a culpa, porque provavelmente não procedeu de forma correta, porque devia ter escondido a sua tendência sexual, porque não devia vestir-se de determinada maneira, é o pior caminho que cada vítima pode permitir-se seguir, mas no qual, inconscientemente, em muitos casos, entra.

Apesar de atualmente a discriminação de género, rácica, de cor ou religiosa assumir números escassos, nas escolas portuguesas outros fenómenos ganharam proporções preocupantes, não exatamente definidos como crimes de ódio, mas cuja interligação não pode de forma alguma ser negada.

A violência expressa através do abuso sexual, da violação, do rebaixamento sexual, do roubo de objetos pessoais (ex: telemóveis), parecem atingir expressão significativa.

Porque, como disse, não distancio as causas deste tipo de comportamentos nocivos aos da prática de crimes de ódio, ouso exemplificar o processo de vitimização, recorrendo ao fenómeno do bullying, por entender que o mesmo contribui para a perceção do caminho mental percorrido pelas vítimas.  

O Bullying ou comportamento escolar disruptivo, não é exclusivo do nosso país nem nasceu em Portugal.

Remonta à década de 70 do séc. passado os primeiros estudos sobre as práticas de violência nas escolas Norueguesas e Suecas. Olweus considerado o fundador da pesquisa sobre bullying começou nessa altura, falamos de uma distância temporal relativa aos dias de hoje de cerca de 50 anos, a alertar a sociedade europeia e mundial para o que parecia ser o nascimento de um fenómeno criminal novo, com tendência a alastrar.

Mais tarde, em 2000 através da Carta de Ottawa, a saúde psicológica surge como algo fundamental a preservar, e em 2001 no Relatório da OCDE, o capítulo 14 intitulado “Violence in Schools; a European Perspective”, vem confirmar que os receios de Olweus se confirmavam.

O combate eficaz às práticas agressivas requer por parte das escolas a implementação de um conjunto de medidas que segundo os especialistas incluem: procedimentos administrativos de supervisão, envolvendo obrigatoriamente toda a comunidade escolar, professores, alunos e funcionários, valorização dos princípios de educação, definição de regras e educação pessoal, moral e social.

Inclui também o incremento da cooperação entre os alunos e incentivo de práticas desportivas, competitivas, assentes na inter-colaboração em pequenos grupos.

Aos Estados exige-se o desenvolvimento de estratégias nacionais de prevenção e combate ao bullying, visando promover sociedades não violentas e contribuindo para que as escolas sejam locais de integração, onde as crianças se sintam seguras em ambiente saudável.

Um recente estudo do Gabinete Regional da Organização Mundial de Saúde para a Europa, refere que 1 em cada 6 jovens, em 44 países do continente europeu foi vítima de cyberbullying nos últimos anos.

Dizem ainda os dados referentes ao período entre 2018 e 2022, que embora o bullying tenha estabilizado, o ciberbullying aumentou devido à crescente presença dos jovens no mundo digital.

Os estudos mais recentes revelam um aumento de ciberperseguição de 12 para 14% nos rapazes e de 7 para 8% nas raparigas.

As vítimas são talvez a parte mais preocupante deste fenómeno pelos traumas que sofrem, levando-as ao isolamento, baixa autoestima, alterações de comportamento (tiques, problemas de sono, pesadelos, perda de apetite, gaguez e outros), à recusa em ir à escola, ao afastamento dos amigos e do convívio em geral. Se dentro do núcleo familiar não sentirem condições para partilhar os seus problemas, não sentirem o apoio de pais, irmãos ou parentes próximos, então estão criadas as condições propícias para a ponderação do suicídio, a que, em alguns casos, se segue a concretização do mesmo.

Apesar de a taxa de suicídio na adolescência em Portugal ser baixa, trata-se de uma causa de morte evitável se forem implementados programas eficazes de prevenção e acompanhamento. O ideal seria que professores e auxiliares tivessem formação específica sobre os principais fatores de risco, detetando e sinalizando adolescentes cujo comportamento se enquadra no risco suicida.

“Impõe-se que se continue a apostar no programa “Escola Sem Bullying. Escola Sem Violência”, criado no ano letivo 2019/2020 pelo Ministério da Educação, procurando incluir estratégias e atividades que contribuam para sensibilizar para a diversidade de comportamentos agressivos, para a identificação de sinais de alerta que indiciem o envolvimento dos jovens em comportamentos de bullying ou de ciberbullying”

Também as famílias deveriam estar capacitadas para a deteção, acompanhamento e tratamento das situações de risco. Muitas famílias não sabem lidar com adolescentes, não sabem ler sinais como o isolamento excessivo, a automutilação ou mesmo atos pré-suicidas. Aliás, em alguns casos, é a própria família uma das principais causas potenciadoras do suicídio. Torna-se imprescindível uma abordagem integrada onde seja possível avaliar as dificuldades psicossociais dos jovens e a existência ou não de disfunções familiares.

Estudos apontam no sentido de o fator preditivo de ideação suicida, mais forte nos adolescentes, ser a sintomatologia depressiva, associada a autocrítica por sentimentos de inadequação, vergonha, stress, ansiedade e ainda memórias de negligência paternal.

É importante reter que em muitos casos os comportamentos autolesivos, precedem em grande quantidade, as tentativas de suicídio, pelo que é imprescindível que os adolescentes em causa possam ser alvo de uma intervenção precoce.

Por último e porque julgo importante em termos de reflexão, creio existir concordância comum que o suicídio na adolescência é mais preponderante como resultado de uma escolha racional e pessoal de escape do que resultado de um ato impulsivo.

Impõe-se que se continue a apostar no programa “Escola Sem Bullying. Escola Sem Violência”, criado no ano letivo 2019/2020 pelo Ministério da Educação, procurando incluir estratégias e atividades que contribuam para sensibilizar para a diversidade de comportamentos agressivos, para a identificação de sinais de alerta que indiciem o envolvimento dos jovens em comportamentos de bullying ou de ciberbullying.

“Será que um cidadão de etnia cigana, ou um detido por roubo ou tráfico no Bairro Cova da Moura, na Amadora, ou no Bairro Pinheiro Torres no Porto, é tratado pela Justiça da mesma forma que o presidente da Câmara A, ou o gestor do Banco B, ou o membro do governo suspeito de envolvimento em corrupção?”

Tendo em conta a sua experiência, tanto na investigação prática como em estudos académicos, como vê a eventual correlação entre a influência dos preconceitos e estereótipos nas várias fases do processo de justiça penal e eventual severidade das sentenças impostas aos indivíduos condenados mais pobres ou integrados em comunidade mais suscetíveis de preconceito?

Vou tentar responder a esta questão, tal como o sugerido, baseando-me apenas na minha experiência profissional e nos conhecimentos adquiridos quer académicos como de vida.

Aparentemente, quando olhamos para a Justiça, o juízo primário que formulamos, mas nem sempre correto, é o de que, para além de ser morosa, dispendiosa e pouco eficaz, é severa com os pobres e dócil com os ricos e poderosos.

A realidade é que a Justiça tem vindo a melhorar em muitos aspetos, nomeadamente na diminuição do período de tempo entre o momento da prática dos factos e o início dos julgamentos. É uma realidade facilmente comprovável especialmente nos denominados crimes de sangue (homicídios, violações, raptos e sequestros, violência doméstica, roubo e outros).

Depois, temos outra tipologia criminal cuja realidade é bem diferente. Falo do crime denominado de colarinho branco (corrupção e crimes associados), em que os envolvidos são indivíduos ligados às elites, ou seja, ao poder político, autárquico, bancário ou empresarial. A principal razão para esta diferença, assenta fundamentalmente na capacidade económica para recorrerem a firmas de advogados especializados e extremamente dispendiosos.

Neste tipo de crimes, teremos de acrescentar a complexidade das investigações, a dificuldade de obtenção de elementos de prova, que quase sempre obriga à apreensão de documentação institucional, empresarial ou bancária, dossiers, ficheiros informáticos, contas em Offshores sediados em paraísos fiscais e outras, as quais obrigam a análise por parte de peritos e por outro lado a capacidade também económica de interpor recursos no âmbito do processo, quer numa fase posterior para instâncias superiores, relativos a decisões de julgamento em 1ª instância.

Temos atualmente exemplos de casos ocorridos em 2014 cujo julgamento ainda nem sequer se encontra marcado, como a denominada “Operação Marquês”.

Não é possível escamotear o facto de um recurso para os tribunais superiores ascender a uma quantia de milhares de euros o que obviamente afasta o cidadão comum dessa possibilidade.

Em suma, a Justiça, por muito que se argumente que todos têm direito a recorrer aos tribunais, não se apresenta de forma igualitária para todos os cidadãos.

Outra questão suscetível de ser equacionada, mas que ninguém gosta de abordar é a seguinte:

Será que um cidadão de etnia cigana, ou um detido por roubo ou tráfico no Bairro Cova da Moura, na Amadora, ou no Bairro Pinheiro Torres no Porto, é tratado pela Justiça da mesma forma que o presidente da Câmara A, ou o gestor do Banco B, ou o membro do governo suspeito de envolvimento em corrupção?

Penso que o desenvolvimento da resposta é absolutamente esclarecedor, independentemente da fase do processo, impondo-se, no entanto, salientar que muito se tem caminhado no sentido de harmonização de procedimentos. Não obstante, a capacidade económica dos intervenientes e a posição social, continuam a ter enorme influência. E não se trata de preconceito…é a realidade!

Concluindo, penso não existir uma correlação direta entre preconceitos e estereótipos nas várias fases de justiça penal e eventual severidade de penas aplicadas a indivíduos mais pobres. O que a realidade traduz, embora ninguém o admita, é uma tramitação processual diferenciada, devido a recursos e estratégias dilatórias do tempo, entre intervenientes pobres e intervenientes ricos e poderosos, pelas razões anteriormente expostas.

Poderíamos também equacionar que normalmente as elites não se envolvem em criminalidade violenta tipo assaltos à mão armada, sequestros ou raptos, pelo que é mais comum aplicar medidas de prisão preventiva a um arguido em crime violento ou de sangue do que a um outro envolvido em fraudes ou atos corruptos. Lógico que, processos com arguidos em prisão preventiva estão sujeitos a prazos curtos de inquérito, o que conduz a julgamentos mais céleres no tempo.

Não está em causa neste raciocínio que os crimes de colarinho branco não sejam graves. É apenas uma constatação da realidade.

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