Hoje temos o prazer de conversar com Lisa Ferreira Vicente, uma ginecologista, obstetra e sexóloga cuja carreira reflecte um profundo empenho na promoção da saúde sexual e reprodutiva em Portugal. Com experiência como colaboradora no Programa Nacional de Saúde Reprodutiva e como chefe da Divisão de Saúde Sexual, Reprodutiva, Infantil e Juvenil da Direção-Geral da Saúde, contribuiu significativamente para a definição de políticas de saúde. Trabalhou no Serviço de Medicina Materna e Fetal da Maternidade Dr. Alfredo da Costa, consolidando ainda mais o seu papel como uma autoridade de confiança na sua área. Os seus conhecimentos abrangem diversos temas como contraceção, menopausa, saúde sexual, saúde reprodutiva na pessoa com diabetes, sexologia e disfunções sexuais, saúde trans e género diversa.
Para além do seu trabalho clínico, Lisa Vicente deixou uma marca indelével através das suas contribuições académicas. É autora e coautora de vários textos científicos e autora do Atlas da V, que se debruça sobre as complexidades da anatomia e da sexualidade femininas. Tem também desempenhado um papel fundamental como formadora em Sexologia Clínica, programas de pós-graduação em Sexualidade Humana e estudos de doutoramento, promovendo uma nova geração de profissionais equipados para enfrentar os desafios em evolução da saúde sexual.
Lisa Vicente defende a quebra de tabus e a expansão do discurso em torno da saúde sexual. E sem tabus ou preconceitos, nesta entrevista, falaremos sobre as persistentes lacunas educacionais na compreensão da anatomia feminina, os debates sociopolíticos em torno da educação sexual e o silenciamento cultural e médico da sexualidade feminina, os desafios enfrentados pelos indivíduos LGBTQIA+ no acesso a cuidados inclusivos e a interação vital de factores físicos, relacionais e culturais na abordagem da menopausa e da saúde sexual.
No seu livro, O Atlas da V, utiliza um título simbólico em vez de nomear explicitamente a vulva e ou a vagina, temas centrais da obra. O que a levou a escolher esta representação mais abstrata e como é que esta escolha reflete o desconforto social ou o tabu que rodeia as discussões abertas sobre a anatomia feminina?
Durante o processo de escrita do livro o ficheiro tinha o nome de Vitória. Penso que o escolhi inconscientemente, mas com o tempo fui-lhe atribuindo a significância da vitória de poder escrever sobre vulva e vagina assim como sobre a sua invisibilidade no discurso social.
“Para mim V é de vulva, de vagina e da vitória de as conhecer na sua diversidade, de as conseguir nomear sem vergonha ou receio. Um percurso e um desafio que continua a fazer sentido”
O título e a capa de um livro, não são uma escolha apenas do autor, mas uma escolha conjunta com a editora. Para mim era importante trazer ao conhecimento a vulva. Abordar a diversidade da vulva, mostrá-la em ilustrações em que se percebesse que são todas diferentes, como todas as caras e mãos são diferentes. Porque em nome do desconhecimento desta diversidade, que é individualidade, muitas pessoas sofrem a angústia de «não se sentirem normais» ou sentir que têm de se submetem a cirurgias ou intervenções para modificar os seus genitais. Em nome da «normalidade» que é um conceito que decorre de um tempo histórico e de uma sociedade especifica. E que muda.
Por isso, para mim, V seria sempre a vulva. Mas ter Vulva na capa de um livro em 2019 era difícil. Como explico a seguir, a palavra «mais arrojada» para designar os genitais externos femininos tinha sido vagina.
Para mim V é de vulva, de vagina e da vitória de as conhecer na sua diversidade, de as conseguir nomear sem vergonha ou receio. Um percurso e um desafio que continua a fazer sentido.
Apesar da crescente abertura e consciencialização para a educação sexual, porque é que a confusão entre os termos “vulva” e “vagina” persiste, mesmo entre as mulheres, e o que é que isto revela sobre as lacunas educacionais na compreensão da anatomia feminina?
A palavra vulva não era nomeada no discurso social, não apenas em Portugal. Com alguns exemplos, pode ser mais simples mostrar o que estou a dizer.
– «Os monólogos da Vagina» uma peça de teatro de 1996 escrita por Eve Ensler (V como se identifica desde 2019 ) fala várias vezes dos genitais externos- vulva- mas designando-a de vagina.
– A obra do artista Jamie McCartney denominada «The Great Wall of Vagina» é constituída por moldes em gesso de 400 vulvas diferentes. Sempre utilizei algumas das suas imagens em formações, conferências e até em consulta para mostrar como eram diferentes as vulvas. Contudo, e apesar de ser uma obra muito significativa, a designação mais uma vez não era a correta. Esta obra esteve em Portugal na primeira exposição do projeto MUSEX (Museu Pedagógico do Sexo): Amor Veneris — Viagem ao Prazer Sexual Feminino do MUSEX — . Exposição patente ao público entre junho de 2022 e março de 2023.
Em outubro de 2022, quando o artista esteve em Lisboa decidiu, finalmente, modificar a designação da obra para «The Great Wall of Vulva».
Em 2018 no jornal El País, li numa curiosa publicação denominada «Entrevista imaginaria à vulva: Que mal he hecho para sufrir esta persecusion?». Um texto de Rita Abundancia que o introduzia da seguinte forma: Falámos com a genitalia externa feminina que sai da sua invisibilidade e reclama o seu território e autonomia à margem da vagina. Que achei uma forma curiosa e divertida de confrontar os leitores com esta questão.
De que forma é que o silenciamento histórico do clítoris tanto no discurso médico ou cultural e a desinformação de longa data em torno dos orgasmos femininos podem de certa forma anular a sexualidade feminina?
As estruturas que constituem o clítoris estão descritas pelos anatomistas clássicos do fim do seculo XIX, como por exemplo Testut e Laterget, mas não como uma estrutura una como a entendemos atualmente. No início do seculo XX, vários investigadores vieram criar uma associação entre a estimulação do clítoris e a «histeria» uma doença de caracter disfuncional mental.
“muitas pessoas continuam a consideram mais «válido» o orgasmo conseguido pela estimulação vaginal. Ainda hoje muitas mulheres sentem como dificuldade não conseguirem atingir o prazer apenas pela estimulação vaginal. Facto que é importante continuar a desconstruir”
Freud, com as suas publicações sobre sexualidade feminina, veio introduzir a ideia de que o orgasmo de uma «mulher madura» era vivido pela estimulação vaginal. Por oposição à estimulação clitoriana que era entendida como uma forma imatura de conseguir um orgasmo. Esta ideia sobreviveu muitos anos, e diria que ainda perdura, no sentido de que muitas pessoas continuam a consideram mais «válido» o orgasmo conseguido pela estimulação vaginal. Ainda hoje muitas mulheres sentem como dificuldade não conseguirem atingir o prazer apenas pela estimulação vaginal. Facto que é importante continuar a desconstruir.
Foi particularmente importante o trabalho realizado já nos anos por 2000 por Helen O’Connell. Na revista da American Urological Association em 2005, publicou um extenso artigo intitulado «Anatomy of the clitoris». Continha o resultado de estudos pormenorizados com ressonância magnética e dissecção anatómica, que mostravam que o clitóris era uma estrutura extensa, constituída pelas porções visíveis (glande e prepúcio) e outras no espaço interno da vulva e da vagina (os corpos cavernosos e o bulbos do clitóris).
A atual concepção é de uma estrutura muito vascularizada e inervada que responde reflexamente aos estímulos sensoriais e eróticos durante a fase de excitação sexual. Nessa altura, a distensão dos espaços vasculares, preenchidos pelo fluxo vascular acumulado, produz um aumento de volume e tensão local. Simultaneamente, na vagina ocorre a produção de um transudado (líquido que passa através dos interstícios das estruturas vasculares) a que se designa lubrificação.
O trabalho desta urologista australiana passou a ser uma referência para a comunidade científica. Em 2009, Pierre Foldés e Odile Buisson publicaram estudos ecográficos que vieram corroborar o trabalho de O’Connell. A Organização Mundial da Saúde (OMS) já incorpora este conceito nos seus documentos mais recentes. Mas esta concepção do clítoris vai entrando devagar na informação generalista que se encontra acerca deste órgão – quase de vinte anos depois.
De que forma é que os debates em torno da inclusão da educação sexual na disciplina Educação para a Cidadania, revelam tensões subjacentes entre pontos de vista progressistas e os valores tradicionais, e quais são as implicações a longo prazo destas tensões para a saúde, o bem-estar e a capacidade de acção das gerações futuras?
Há anos que a inclusão do tema da educação sexual formal em contexto escolar é fonte de discussão recorrente. No centro dos argumentos encontramos o suposto receio de que com mais informação os jovens possam fazer escolhas mais arriscadas ou precoces.
“A educação sexual não se resume apenas a informação sobre prevenção de gravidez ou de infeções de transmissão sexual. Deve incluir informação, entre outros temas, sobre diversidade, diálogo, sexualidade, relacionamentos afetivos e direitos sexuais”
Quando está demonstrado que com melhor informação sobre sexualidade e direitos sexuais as pessoas tendem a ter relações sexuais mais tarde, optam por escolhas mais seguras (para si), consentidas e respeitadoras de outras opções. A educação sexual não se resume apenas a informação sobre prevenção de gravidez ou de infeções de transmissão sexual. Deve incluir informação, entre outros temas, sobre diversidade, diálogo, sexualidade, relacionamentos afetivos e direitos sexuais. A educação sexual pode capacitar e empoderar pessoas para fazerem escolhas respeitadoras da liberdade individual.
No caso concreto da disciplina de Cidadania, não acompanhei especificamente o tema, por isso não o abordo.
Tendo em conta a evolução do reconhecimento das necessidades de saúde sexual e reprodutiva dos indivíduos LGBTQIA+, como podem os sistemas de saúde dar resposta às necessidades interseccionais e variadas das populações queer, transmasculinas, não binárias e outras populações com diversidade de género?
Os cuidados de saúde já são desafiados, há alguns anos, a dar resposta às necessidades das pessoas lésbicas e gays. Há atualmente uma atenção que não existia há 20 anos, das necessidades especificas dos relacionamentos homoafetivos nos direitos e cuidados em saúde sexual e saúde reprodutiva. Existiram modificações na Lei e nos cuidados no que diz respeito à conjugalidade, à parentalidade e no acesso a cuidados de saúde sexual e saúde reprodutiva. As pessoas trans e género diverso têm necessidades muito diferentes entre si no que diz respeito à saúde. A tradução de Guidelines internacionais, a produção de normas e orientações nacionais, são essenciais para assegurar que sejam prestados cuidados de saúde de qualidade e em acordo com os dados científicos mais atuais. Quando são necessárias intervenções e terapêuticas de afirmação de género, mas também no que diz respeito aos cuidados de saúde em geral: vigilância de saúde e rastreios a longo prazo. E outras questões surgiram com o tempo, como por exemplo os cuidados em menopausa, como abordei na minha comunicação na mesa em que intervim.
“Esta formação no caso das pessoas médicas deve ser transversal a todas as especialidades e não apensas as que intervêm na área da saúde sexual e saúde reprodutiva. Existe consenso de que os cuidados de saúde primários constituem a porta de entrada no serviço de saúde para todas as pessoas”
Além disso os cuidados de saúde e profissionais de saúde têm um desafio que não se esgota na prestação dos cuidados em saúde sexual e saúde reprodutiva para as pessoas LGBTQIA+. Todas elas acedem ao sistema de saúde por outras razões – doenças agudas ou doenças crónicas- e têm o direito de ser respeitadas na sua identidade e privacidade.
Por isso é fundamental a formação de profissionais de saúde (das mais variadas áreas) para temas como diversidade e sexualidade, nos currículos de formação universitária e pós-graduação, assim como em formação especifica. Esta formação no caso das pessoas médicas deve ser transversal a todas as especialidades e não apensas as que intervêm na área da saúde sexual e saúde reprodutiva. Existe consenso de que os cuidados de saúde primários constituem a porta de entrada no serviço de saúde para todas as pessoas. E por isso, nesta questão também. Posso dizer que já existem várias formações, atividades e recursos no nosso sistema nacional de saúde capazes de dar esta resposta. Urge aumentar a capacidade de resposta, nomeadamente alargando esta capacidade para fora dos grandes centros urbanos.
Como é que normas culturais e papéis de género profundamente enraizados, tais como os que envolvem a virgindade e a masculinidade, contribuem para a estigmatização das questões de saúde sexual e reprodutiva, e que estratégias podem ser utilizadas para desconstruir estas percepções prejudiciais? Assim como, dado o reconhecimento crescente da saúde sexual como um indicador vital do bem-estar geral, que estratégias devem os sistemas de saúde adotar para desconstruir a negligência sistémica de questões como o sexo doloroso, a diminuição do desejo e a anorgasmia nas mulheres?
A saúde sexual é um aspeto vital da saúde de cada individuo, como é reconhecido há anos, nomeadamente pela Organização Mundial de Saúde. Contudo, constitui com frequência um desafio em várias sociedades. Muitas vezes a saúde sexual é apenas pensada pelos aspetos negativos relacionados com a vivência da sexualidade. Por exemplo o risco de gravidez, a gravidez adolescente, o risco de infeções de transmissão sexual. Quando é essencial que seja pensada pela positiva e integrada nos cuidados prestados em diferentes fases e circunstâncias da vida. Na juventude, nas pessoas com doença, nas pessoas com necessidades especificas, nas pessoas idosas. Ou seja, a saúde sexual é de todas as pessoas e não apenas dos jovens e das pessoas saudáveis. E esta diferença é essencial para a forma como são pensadas e planeadas as estratégias de saúde.
“Muitas vezes a saúde sexual é apenas pensada pelos aspetos negativos relacionados com a vivência da sexualidade. Por exemplo o risco de gravidez, a gravidez adolescente, o risco de infeções de transmissão sexual. Quando é essencial que seja pensada pela positiva e integrada nos cuidados prestados em diferentes fases e circunstâncias da vida”
Papeis de género rígidos e dicotómicos, assim como as narrativas do que é socialmente correto ou esperado, criam tensão e imposição sobre a forma como se vive e exprime a sensualidade, a sexualidade, a intimidade e os relacionamentos em geral. Cada pessoa- independentemente do seu género e identidade- deve ter a possibilidade de se expressar e viver livre de pressão, coerção ou relacionamentos tóxicos.
É difícil incluir todas as estratégias nesta resposta, porque devem incluir os vários intervenientes da sociedade. Na área que conheço melhor, saliento que nos cuidados de saúde- incluindo neste conceito os profissionais de diferentes de formações – é indispensável a formação especifica nas questões da sexualidade humana. Como digo com alguma frequência, assim como ninguém começa a tratar hipertensão ou asma, sem conhecer as doenças e como funcionam as várias intervenções, também não se pode abordar a sexualidade a nível dos cuidados de saúde sem ter formação especifica neste tema. Daí o desafio de investir na formação em sexualidade em Portugal. Existem já várias Faculdades e Sociedades científicas que apostam nisso, o que é fundamental para criar resposta nos cuidados de saúde futuros.
Para além dos sintomas comuns, como afrontamentos e insónias, a transição para a menopausa traz frequentemente desafios sexuais. Um inquérito realizado a 1.805 mulheres pós-menopáusicas revelou que, embora um terço (34%) tenha relatado uma diminuição do desejo sexual e mais de metade (53%) tenha sentido uma diminuição do interesse pelo sexo, a maioria (71%) ainda valorizava a manutenção de uma vida sexual activa. Como é que os serviços de saúde, as normas culturais e as dinâmicas relacionais podem trabalhar em conjunto para abordar a complexa intersecção dos sintomas físicos e os seus profundos impactos psicossociais na autoestima, na intimidade e na qualidade de vida global durante e após a menopausa?
Relativamente às dificuldades sexuais sentidas por mulheres, a diminuição do desejo/interesse sexual, está entre as disfunções sexuais mais frequentemente relatadas. Isto é verdade ao longo de toda a vida, não apenas na menopausa.
Este fato decorre, de quando surgem dificuldades como dor, diminuição da excitação/lubrificação elas traduzem-se em menor satisfação sentida com a interação. O que, por sua vez, leva a menor motivação e disponibilidade para iniciar uma nova interação.
“É importante criar mais e melhor informação na população em geral e entre os cuidadores em saúde. É voz comum dizer que o desejo – «libido»- diminuiu na menopausa. É importante dizer que esta afirmação está incorreta”
Na menopausa pode existir uma diminuição do desejo associado às dificuldades com o sono, o cansaço, as mudanças de humor ou humor mais negativo, por exemplo. O que gera menor disponibilidade para se relacionar em geral e sexualmente. Por outro lado, a diminuição dos estrogénios pode diminuir a lubrificação (resposta local) e a excitação subjectiva (a excitação sentida) e com isso, tornar as relações sexuais (e não apenas relações com penetração vaginal) menos prazerosas ou até dolorosas.
É importante criar mais e melhor informação na população em geral e entre os cuidadores em saúde. É voz comum dizer que o desejo – «libido» – diminuiu na menopausa. É importante dizer que esta afirmação está incorreta. Na menopausa existem com frequência alterações (biopsicossociais) que podem implicar na vivência de uma sexualidade prazerosa, mas que são modificáveis. E que, quando existem dificuldades ou disfunções sexuais nesta fase é uma boa razão para procurar orientação-tratamento.
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