Joana Gama

Joana Gama

“A vulnerabilidade traz intimidade e a comédia não é excepção”

Bem-vindos à nossa Entrevista Impacto com Joana Gama, conhecida pela sua abordagem franca e multifacetada à comédia e ao storytelling. Desde as suas actuações em stand-up comedy e improvisação até ao seu trabalho na rádio e em podcasts, Joana Gama tem causado impacto com a sua mistura única de humor e introspeção. O seu trabalho estende-se por várias plataformas, incluindo espectáculos de stand-up como “Estou só a ver” e ‘Comedy Therapy’, podcasts envolventes como  “Banana-Papaia”, “Psychoterapia” e “Não sei ser” e autora de três livros, “Estou Toda Grávida”, “A Mãe é que Sabe” (em co-autoria com Joana Paixão Brás) e “Alguém Que Me Cale”.

Na sua carreira, Joana não se tem esquivado a abordar temas complexos e sensíveis, que vão desde traumas pessoais e saúde mental a questões sociais e nuances culturais. A sua comédia faz frequentemente a ponte entre o humor e as verdades emocionais mais profundas, oferecendo entretenimento e reflexão.

Nesta entrevista, vamos aprofundar algumas questões que envolvem a intersecção entre humor e consciência social. Vamos explorar a forma como Joana Gama percorre o delicado equilíbrio entre a liberdade criativa e a responsabilidade de lidar com as diversas sensibilidades do público. Discutiremos também o papel do humor como mecanismo de sobrevivência, a influência das perspectivas culturais na comédia e o impacto das experiências pessoais no sucesso de um comediante.

“A forma como utilizamos determinadas ferramentas vai dependendo da nossa maturidade, do nosso caminho, das nossas necessidades”

Sigmund Freud sugeriu que o humor pode ser uma forma de evitar sentimentos de medo e ansiedade, actuando como um mecanismo de defesa. Embora o humor seja frequentemente utilizado para lidar com o stress e as emoções negativas, estudos mostram que o impacto do humor depende do estilo utilizado, pode ser curativo ou potencialmente prejudicial. Como é que as ideias de Freud se relacionam com as suas próprias experiências de utilização do humor como mecanismo de defesa, tanto a nível pessoal como profissional? E como trabalha a linha ténue entre o humor que alivia o stress e o humor que pode inadvertidamente magoar-se a si ou aos outros?

A forma como utilizamos determinadas ferramentas vai dependendo da nossa maturidade, do nosso caminho, das nossas necessidades. Tenho dividido a minha carreira nas fases de infância, adolescência e adulta, com o que isso acompanha logo à primeira vista. Na primeira fase, o mais evidente era a necessidade de validação imediata, ser vista – indiferentemente da forma, reconhecerem-me como ser vivo. Na segunda, o principal objectivo (em grande parte inconsciente) foi deixar sair a zanga, a mágoa e sentir-me empoderada, quebrando censuras sociais e auto-impostas. Declarei guerra, finalmente, ao meu passado e a tudo o que me fez sentir espartilhada e não merecedora.

Agora, nesta terceira fase (espero que haja mais), sinto-me mais madura, mais intencional, mais livre também por essa intencionalidade e mais tridimensional. Consigo apresentar um produto menos acidental em palco e, ao mesmo tempo, muito mais transparente por haver uma nitidez maior da minha narrativa.

O humor foi o espelho do meu crescimento interior e, ao mesmo tempo, uma ferramenta para sentir que tinha algum poder na minha própria vida depois de anos a sentir-me espezinhada e desrespeitada. Agora, é também a minha forma de apreciação por esse crescimento e sedimentação de uma narrativa menos doente e mais prolífera.  O meu humor sou eu.

“A partilha da própria dor e trauma emocional é uma narrativa que nos liga a todos, acredito que em muitas formas de arte. Numa arte de performance em que o muro que nos distancia é tão fino, é natural que o comediante procure ser ouvido por aquilo que mais precisa de falar.”

Existe frequentemente a percepção de que alguns dos comediantes mais bem-sucedidos recorrem à sua própria dor e trauma emocional para se ligarem ao público e o fazerem rir. Na sua experiência, acredita que existe uma relação direta entre as lutas pessoais de um comediante e a sua capacidade de alcançar o sucesso na comédia? Como pensa que esta ligação, se existir, influencia tanto a autenticidade do seu humor como o impacto que tem no seu público?

A partilha da própria dor e trauma emocional é uma narrativa que nos liga a todos, acredito que em muitas formas de arte. Numa arte de performance em que o muro que nos distancia é tão fino, é natural que o comediante procure ser ouvido por aquilo que mais precisa de falar. Se for sobre o quanto odeia esperar em filas, assim será. Se estiver num processo de auto-análise, de sofrimento ou algo mais introspectivo, tal irá reflectir-se no seu trabalho, de forma mais evidente ou mais subtil (ficando, então, para os olhos dos mais atentos).

Não acredito que haja comediantes que escolham falar desse tema para “viverem” dele sem terem uma natural inclinação para isso. É um assunto que emerge das suas vidas, é um assunto que requer muita verdade. Ainda para mais num espectáculo em que o indivíduo é o centro da acção. O público liga-se à verdade. Com persona ou não, o artista expõe-se sempre e tem de fazê-lo ainda para mais quando versa sobre este tema.

O comediante que fale desses assuntos em palco está a pôr-se ao nível humano de quem o observa. Deixa de haver algo que o distancie de quem o quer ouvir, ver. Cria-se intimidade e não apenas admiração. Essa intimidade cria uma fidelização muito forte no público, um carinho de quem “nos viu crescer e cresceu connosco”. A vulnerabilidade traz intimidade e a comédia não é excepção.

“Sinto a minha arte inexoravelmente ligada ao meu sentido de identidade e, por isso, não a trabalho de uma perspectiva tão filosoficamente consciente. Parte de um egocentrismo em negação. Sinto-me especial por não ser especial”

O humor é percepcionado e valorizado de forma diferente entre culturas, por exemplo enquanto algumas, como as que seguem a filosofia confucionista na China, podem considerá-lo inapropriado, outras, como os taoistas ou os canadianos, vêem-no como benéfico e socialmente aceitável. Como comediante que lida com diversos públicos, como é que aborda estas diferenças culturais no seu trabalho? Considera que determinados estilos de humor têm mais impacto em determinados grupos culturais e como adapta a sua narrativa para garantir que se mantém eficaz e respeitosa em diferentes contextos culturais?

Não complexifico tanto assim o meu trabalho. Sinto a minha arte inexoravelmente ligada ao meu sentido de identidade e, por isso, não a trabalho de uma perspectiva tão filosoficamente consciente. Parte de um egocentrismo em negação. Sinto-me especial por não ser especial e, por isso, o meu trabalho passa por seleccionar coisas que nos unam ou que unam o público por não se reconhecer nalgumas das minhas especificidades. Actuando por todo o país, posso ter de fazer algumas adaptações para ter um espectáculo mais apreciado pelo público num sítio ou outro, mas nada que roce a edição por diferenças culturais. Parte do sucesso de um comediante passa por saber comunicar para a audiência que tem. Se um dia actuar em Angola, já sei por onde começar (falei com comediantes Angolanos recentemente) mas, por onde ir… o caminho será sempre o que me fizer sentido.

Actuando de forma verdadeira, oferece-se a humildade da ignorância ao falar sobre assuntos mais sensíveis. O que cria óptimas oportunidades de riso, de ligação e de aprendizagem para todos.

“Os comediantes são um espelho de si mesmos, não se auto-proclamam um exemplo a seguir nem, em princípio, fazem humor para conduzir uma “seita”. Atribuo a responsabilidade da apropriação do conteúdo ao espectador e à atribuição de ferramentas para um melhor espírito crítico à sociedade e curiosidade do indivíduo”

Dave Chappelle é frequentemente elogiado pela sua autenticidade e capacidade de abordar questões sociais complexas, como o racismo e a brutalidade policial, a partir da sua perspetiva de homem afro-americano. No entanto, os seus comentários sobre o feminismo e as questões LGBTQ geraram controvérsia, levantando questões sobre se o seu humor reforça ou desafia estereótipos. Acredita que os comediantes têm a responsabilidade de ter em conta a forma como as suas piadas podem ser percepcionadas pelos diferentes movimentos sociais?

Os comediantes são um espelho de si mesmos, não se auto-proclamam um exemplo a seguir nem, em princípio, fazem humor para conduzir uma “seita”. Atribuo a responsabilidade da apropriação do conteúdo ao espectador e à atribuição de ferramentas para um melhor espírito crítico à sociedade e curiosidade do indivíduo. O papel de um comediante é ser. Ser engraçado, ser louco, ser pensante, ser provocador: ser. Chappelle é livre de dizer o que quiser, como quiser, não incitando directamente ao ódio. Acredito na curadoria de conteúdos das plataformas, nos disclaimers e, também, da reacção natural da audiência perante a “energia” que o comediante transmite. Creio ser natural haver um desfasamento de uma geração mais antiga de comediantes e expectável este desajuste. É interessante observá-lo e pode também ser usado a favor da sensibilização para a importância do feminismo e questões de identidade.

“Um comediante mais rodado, com mais material, mais experiência, consegue ter a agilidade quase imediata de saber entregar a piada sobre um tema que requer maior sensibilidade, mesmo que isso possa implicar não ter qualquer tipo de sensibilidade por poder estar a caricaturar um comportamento mais primário, um estereotipo, ainda que de forma não totalmente óbvia”

Defensores da liberdade de expressão argumentam que as preocupações em torno do politicamente correto e da “wokeness” podem minar a capacidade do humor para abordar verdades mais profundas e proporcionar um meio reparador para discutir realidades dolorosas. Sugerem que concentrar-se demasiado na forma como uma piada é recebida e não na sua intenção pode levar a mal-entendidos e a uma personalização excessiva por parte do público. Como é que lida com esta tensão entre ser brutalmente honesta e potencialmente ofender ou deturpar experiências alheias à sua?

Geralmente, o público que compra bilhetes para os meus espectáculos além de estar educado sobre o que é comédia, também já compreende a minha persona e até numa banda considerável. Não corro riscos de ser mal interpretada facilmente.  A partir do momento em que somos seres empáticos, o quer que façamos será dito de forma mais cuidadosa. O que não implica uma censura no palavreado, no tom de voz, mas um simples sorriso no final, um movimento condenatório do próprio discurso a seguir, desconstruir a piada se se sentir um desconforto na sala, ainda que aparentemente sem motivo para isso… Os comediantes, em palco, tocam muito de ouvido. Um comediante mais rodado, com mais material, mais experiência, consegue ter a agilidade quase imediata de saber entregar a piada sobre um tema que requer maior sensibilidade, mesmo que isso possa implicar não ter qualquer tipo de sensibilidade por poder estar a caricaturar um comportamento mais primário, um estereotipo, ainda que de forma não totalmente óbvia.

Eu não quero magoar ninguém, mas quem for a um espectáculo de comédia pode sujeitar-se a umas piadas que goste mais do que de outras.

“O mundo mudou e mudei com ele. Tenho muito gosto em encontrar maneiras de dizer o que quero, andando no limbo entre o correcto e o desafiador, esse “policiamento” ajuda-me a ser menos gratuita. Mesmo que o texto seja “a direito”, a entrega tem de ter uma outra textura”

Com o aumento da cultura do cancelamento, muitos comediantes são pressionados a autocensurar o seu material para evitar reacções adversas. Isto cria um equilíbrio difícil entre manter a liberdade criativa e ser sensível às percepções do público. Já se sentiu pressionada a autocensurar ou a “policiar “o seu trabalho?

Faço stand-up há mais de uma década e não uso material antigo por já não me identificar com ele. Não é por ser “bom” ou “mau”, é mesmo por eu já não ser aquela pessoa e, por isso, não sentir verdade naquilo que iria dizer se o mantivesse.

O mundo mudou e mudei com ele. Tenho muito gosto em encontrar maneiras de dizer o que quero, andando no limbo entre o correcto e o desafiador, esse “policiamento” ajuda-me a ser menos gratuita. Mesmo que o texto seja “a direito”, a entrega tem de ter uma outra textura.

Sinto maior “policiamento” ou “auto-censura” em eventos empresariais ou quando trabalho em instituições o que considero não só normal, mas como expectável e compreensível.

 

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