Isabel Nogueira

Isabel Nogueira

“é a arte que, muitas vezes, consegue ultrapassar e até terminar com determinados preconceitos. A arte tem uma característica específica que é a de, por um lado, ser fruto do seu tempo e existir em relação com ele; por outro, e pela sua intrínseca e ontológica necessidade de inovação, contribuir para o progresso, denúncia e até superação relativamente ao seu presente”

Na entrevista de hoje, aprofundamos a complexa intersecção entre arte, preconceito e normas sociais, guiados pelo profundo conhecimento de Isabel Nogueira sobre história e teoria da arte.

Doutorada em Belas-Artes, com especialização em Ciências da Arte, pela Universidade de Lisboa, e pós-doutorada em História e Teoria da Arte Contemporânea e Teoria da Imagem pela (Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne), as contribuições académicas de Isabel Nogueira abrangem o meio académico, a crítica e a investigação. Professora da Sociedade Nacional de Belas-Artes e investigadora principal do CIEBA/Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. A sua presença em organizações de renome, como a Associação Internacional de Críticos de Arte (AICA) e o Institut Æsthetica: Art et Philosophie/Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne, reforçam ainda mais a sua reputação neste domínio. Isabel Nogueira é ainda editora da revista Arte e Cultura Visual (CIEBA), autora correspondente da revista Recherches en Esthétique e crítica na revista Contemporânea.

Nesta entrevista exclusiva, conversamos sobre a influência do preconceito na história da arte, no cinema e nas normas sociais. Desde o desvendar do impacto histórico do preconceito nos movimentos artísticos até ao significado contemporâneo de desafiar padrões de beleza, cada pergunta tem como objetivo, esclarecer o potencial transformador da arte na reformulação das nossas percepções e no confronto com os nossos preconceitos.

Bem-vindos!

“é nesta luta, quase corpo a corpo, precisamente contra o preconceito e os cânones artísticos do passado, que a arte moderna – por isso se chama precisamente assim – se insurge de modo inédito e sem retorno”

Considerando a sua vasta experiência e formação em História e Teoria da Arte Contemporânea, como vê o preconceito a influenciar a formação de normas e valores sociais? Pode dar-nos exemplos históricos em que o preconceito alterou significativamente a trajetória de movimentos artísticos ou o reconhecimento de artistas?

Creio que a questão poderá ser equacionada ao contrário: é a arte que, muitas vezes, consegue ultrapassar e até terminar com determinados preconceitos. A arte tem uma característica específica que é a de, por um lado, ser fruto do seu tempo e existir em relação com ele; por outro, e pela sua intrínseca e ontológica necessidade de inovação, contribuir para o progresso, denúncia e até superação relativamente ao seu presente. Na verdade, e a título de exemplo, foi no fervilhante século XIX e no decorrer do modernismo que foi possível, pela primeira vez na História da Arte, o emergir de uma cultura independente da cultura oficial. A arte moderna começa na sequência da ruptura de códigos visuais que a fotografia espoletou – a chamada “crise da representação” – e da consequente necessidade de abstracção – relativamente ao objecto representado – como única possibilidade de inovação, ou seja, de ir contra uma arte convencional, ligada genericamente a uma representatividade realista ou naturalista que durou séculos. O primeiro movimento de vanguarda, o fauvismo, que também eclodiu em França, foi de difícil aceitação, a cujos artistas a crítica conservadora chamada de “invertebrados”. Mas é nesta luta, quase corpo a corpo, precisamente contra o preconceito e os cânones artísticos do passado, que a arte moderna – por isso se chama precisamente assim – se insurge de modo inédito e sem retorno.

 Como é que o preconceito influenciou historicamente a construção de narrativas e cânones na história da arte? Que metodologias propõe para descobrir e integrar as diversas contribuições artísticas que foram marginalizadas ou omitidas do registo histórico?

A História da Arte, tal como a História, é uma narrativa produzida em determinado momento e contexto, portanto, com as características desse mesmo contexto. Ambas partem de factos, ou seja, de acontecimentos – uma obra de arte é um acontecimento – que existem em determinado tempo e espaço. Contudo, os factos e as vozes que enriquecem e complexificam essa narrativa deverão ser permanentemente acrescentados, contemplados, revistos, complexificados. Esta é uma questão fundamental, por exemplo, no que se refere ao pós-colonialismo e à fundamental reescrita – diferente de apagar – da História.

“Sem desejo de ver, ou disponibilidade activa para ver, não há relação com a obra de arte ou com a imagem artística”

No seu ensaio “A imagem no enquadramento do desejo: transitividade em pintura, fotografia e cinema” (Book Builders, 2016), aprofunda a natureza multifacetada do desejo na arte visual, considerando as suas dimensões emotivas e comunicativas a par com o contexto cultural e histórico. Na sua opinião, como é que o preconceito poderá influenciar a forma como o desejo é representado e percepcionado nestes meios e qual o impacto que isso tem na nossa sociedade?

Sem desejo de ver, ou disponibilidade activa para ver, não há relação com a obra de arte ou com a imagem artística. Este livro debruça-se sobre a imagem na pintura, na fotografia e no cinema e nas suas relações, que entendo também como transitivas, ou seja, precisamente como desejantes de sair da sua condição original de suporte e de linguagem. Por outras palavras, por um lado, pensa-se a relação do espectador com a obra precisamente a partir do desejo de ver; por outro, na relação transitiva entre estes três tipos de imagem, que assenta num desejo de ser, por algum motivo, a outra. Por exemplo, a pintura deseja o dinamismo/automatismo da fotografia; a fotografia deseja o enquadramento classicista e rigoroso da pintura; ou ambas desejam o fora de campo cinematográfico. O desejo de ver o Outro pode, precisamente e também, abolir preconceitos.

“O desejo de ver o Outro pode, precisamente e também, abolir preconceitos”

Em “A encantatória visualidade: textos sobre cinema” (Edições Húmus, 2023), faz uma exploração e reflexão sobre as intersecções do cinema com a história da arte, a política e os movimentos sociais. Neste contexto, como vê a capacidade do cinema para espelhar e desafiar preconceitos sociais? Pode dar exemplos do cinema contemporâneo que ilustrem eficazmente esta dinâmica?

O cinema é o meio artístico mais eficaz para mostrar as vidas, as inquietações e as histórias de outros e de outras. E não só, claro, o cinema documental, também a ficção. O cinema é uma extraordinária janela – e evocando Leon Battista Alberti ao referir-se ao quadro/enquadramento no célebre tratado De pictura (1435) – como “janela aberta sobra a História” e, consequentemente sobre o mundo e sua complexidade e diversidade. O preconceito é fechado, contrariamente à empatia, que é aberta e tolerante.

“O cinema é o meio artístico mais eficaz para mostrar as vidas, as inquietações e as histórias de outros e de outras. E não só, claro, o cinema documental, também a ficção. O cinema é uma extraordinária janela”

No seu livro História da arte em Portugal: do Marcelismo ao final do século XX (Book Builders, 2021) apresenta uma análise da história da arte portuguesa durante um período de grandes mudanças políticas, sociais e culturais, incluindo a Revolução de abril de 1974 e a adesão de Portugal na Comunidade Económica Europeia (CEE). Pode-nos apresentar casos ou acontecimentos específicos deste período em que o preconceito desempenhou um papel significativo na inibição ou no fortalecimento de artistas, exposições ou políticas culturais, influenciando assim a trajetória da arte portuguesa?

A Revolução de Abril de 1974 pôs fim a um regime colonialista (o mais longo: 1415-1974), politicamente isolado, autoritário, geográfica e culturalmente periférico, e esteticamente reaccionário. Tudo isto, naturalmente e já em si, preconceituoso e atrasado. Os artistas foram produzindo, contudo e de modo pulverizado, obra de arte inequivocamente moderna, independentemente desta conjuntura, sobretudo os artistas que conseguiram ir ou contactar para/com o exterior, a única respiração artística possível. O problema de Portugal era mais cultural e institucional do que propriamente artístico, precisamente porque houve sempre casos de artistas notáveis. Mas este tecido cultural atrasado – o ensino artístico necessitava de reformas urgentes, não existiam museus de arte moderna e contemporânea (o Museu republicano de Chiado só em 1994 abriria com um programa e instalações adequados; o CAM/Fundação Calouste Gulbenkian inauguraria em 1983; o CAC, no Porto, foi efémero, estando activo entre 1976 e 1980; Serralves inauguraria em 1987 e o Museu de Arte Contemporânea em 1999), as revistas especificamente sobre arte eram escassas e/ou efémeras (Colóquio/Artes; Arte Opinião, Opção, Revista de Artes Plásticas) – e a dificuldade de, imediatamente a seguir à Revolução, o Estado conseguir articular políticas culturais eficazes e continuadas, foram factores determinantes na difícil sedimentação do tecido artístico português, que demorou, portanto, a acontecer. O próprio Ministério da Cultura só seria criado com o Governo socialista de Mário Soares, em 1983, passando novamente para Secretaria de Estado da Cultura com Cavaco Silva, em 1985, assim permanecendo uma década. A fundamental democratização do regime teve, portanto, várias complexidades e morosidades no que à cultura diz respeito. Destaco, por exemplo, como factor notável, a emancipação e maior visibilidade de várias mulheres artistas, com obra de nível internacional, que foram conseguindo sempre superar a limitação imposta pelo país preconceituoso e medroso que fora longamente Portugal, de que são exemplos Ana Hatherly, Lourdes Castro, Helena Almeida, Ana Vieira, Túlia Saldanha, entre outras, que a ditadura, na verdade, nunca conseguira silenciar.

“Destaco, por exemplo, como factor notável, a emancipação e maior visibilidade de várias mulheres artistas, com obra de nível internacional, que foram conseguindo sempre superar a limitação imposta pelo país preconceituoso e medroso que fora longamente Portugal, de que são exemplos Ana Hatherly, Lourdes Castro, Helena Almeida, Ana Vieira, Túlia Saldanha, entre outras, que a ditadura, na verdade, nunca conseguira silenciar.”

Antecipando a sua presença como oradora na conversa warm up Festival Impacto Sobre o tema “Redefinir a beleza”, e com o festival a destacar a ligação intrínseca entre os padrões de beleza e preconceito e a sua influência significativa na nossa sociedade.  Do seu ponto de vista, de que forma é que estes padrões de beleza têm impacto tanto na criação como na recepção da arte?

Por definição, um padrão isola, escolhe, portanto, deixa de fora todo um leque de opções e de possibilidades. À sua maneira, um padrão é, por conseguinte, preconceituoso. O primeiro cânone de beleza no Ocidente foi absolutamente idealizado na Grécia por Policleto, ou seja, não tinha correspondência com a realidade. Curiosamente, nos dias de hoje, depois de tanto tempo e de tanto acontecimento, estes padrões são muitas vezes construídos artificialmente e manipulados na sua reprodução através das redes sociais. O mundo é um lugar complexo.

“Por definição, um padrão isola, escolhe, portanto, deixa de fora todo um leque de opções e de possibilidades. À sua maneira, um padrão é, por conseguinte, preconceituoso”

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