Inês Alves é uma figura notável no âmbito das doenças raras, em particular no domínio das displasias ósseas. Enquanto membro do Comité dos Medicamentos Órfãos da Agência Europeia de Medicamentos (EMA), membro do ERN BOND – Rede Europeia de Referência para as Doenças Ósseas Raras e doutoranda na área da Acondroplasia, a sua experiência e dedicação à representação dos doentes são singulares. Para além do seu extenso percurso académico e profissional, Inês Alves é fundadora de várias iniciativas, incluindo a ANDO Portugal – Associação Nacional de Displasias Ósseas, e a Beyond Achondroplasia. Com uma forte rede internacional e uma abordagem baseada em dados, Inês Alves está empenhada em criar resultados tangíveis para as pessoas e famílias afectados por displasias ósseas.
Nesta conversa relevante com Inês Alves, abordaremos as questões críticas que envolvem as displasias ósseas raras e o papel vital da consciencialização, do apoio e da inclusão na melhoria da vida das pessoas com esta condição.
Hoje assinala-se o Dia Mundial das Doenças Raras. Pode explicar-nos porque é que acredita que é crucial que a sociedade conheça a existência de doenças raras e a importância de campanhas de informação e sensibilização para as identificar e respeitar?
A genética é a base da nossa existência e é pelas alterações genéticas que hoje existem as populações como as conhecemos atualmente. A genética faz parte de nós como sociedade e como pessoas únicas. E as alterações genéticas continuam a fazer parte da nossa existência, sendo a causa da grande maioria das doenças ou condições raras. Todos, sem exceção e na sua diferença individual e genética, fazemos parte da Humanidade. É importante que a sociedade compreenda isto, aceite e inclua todos que dela fazem parte.
Fundou a ANDO Portugal – Associação Nacional de Displasias Ósseas em 2015. Como é que descreveria “displasia óssea” a alguém que não está familiarizado com o termo? Poderia dar uma explicação simples para ajudar-nos a compreender o seu significado e implicações?
Displasia óssea origina baixa ou extrema estatura e alterações das dimensões ou formas de partes do corpo humano. Também pode ser designada por condição óssea rara. Estão atualmente identificados 771 tipos de displasia óssea, organizados por 41 grupos com base em critérios genéticos, fenotípicos (aspeto físico), radiológicos e bioquímicos. Embora sejam individualmente raras, têm uma incidência média de 1 caso a cada 5000 nascimentos. As pessoas com uma displasia óssea vivem desafios diários de mobilidade, com impacto significativo na sua vida diária pessoal e social e de “Acessibilidades” que são na realidade, inacessíveis.,
Tendo em conta a sua experiência profissional e académica, o seu envolvimento na representação de pessoas com doença rara e a jornada pessoal que se seguiu ao diagnóstico de acondroplasia de um dos seus filhos, poderia explicar os princípios ou crenças fundamentais que lhe são mais importantes e que considera serem o seu manifesto orientador?
Na realidade não. Representar um grupo de pessoas com experiências de vida relacionadas com uma displasia óssea foi uma decisão muito difícil e ponderada. Não gosto nada da maioria das redes sociais pela distorção da individualidade que se reduz a imagens idealmente bonitas e na necessidade de aparecer neste e naquele momento social como uma quase autoafirmação de valor. Mas infelizmente vivemos na Era das redes sociais e as organizações e entidades têm de mostrar o seu trabalho e projetos por aí. O que me levou a tomar a decisão de fundar a ANDO Portugal, a Associação Nacional de Displasias Óssea, foi a falta de informação, as dificuldades burocráticas e no acesso a cuidados de saúde diferenciados e perceber que tinha de agir pelas outras famílias, pelas outras crianças e adultos que existem no nosso país e que vivem com uma displasia óssea. A minha filha Clara não foi o motivador para a causa, foi sim o despertar para as necessidades. As pessoas foram o meu motivador.
“Considero que é essencial as pessoas acederem a informação num formato mais esclarecedor e acessível, e que seja rigorosa e atual. Desta forma, as pessoas têm maior capacidade de participar nos processos de decisão”
Como fundadora da ANDO Portugal e do site “Beyond Achondroplasia”, pode falar-nos da missão e dos objectivos destas organizações e da forma como apoiam as pessoas com displasias ósseas raras?
O acesso à informação e aumento do conhecimento são os pilares destas iniciativas. Considero que é essencial as pessoas acederem a informação num formato mais esclarecedor e acessível, e que seja rigorosa e atual. Desta forma, as pessoas têm maior capacidade de participar nos processos de decisão.
Outro ponto essencial destas iniciativas é gerar mudança na sociedade, pela linguagem escrita e usada. Há ainda termos que a sociedade associa a pessoas com displasia óssea, que são pejorativos e redutores do valor humano e social. Educar a sociedade em geral é o passo fundamental para a forma com as pessoas com displasia óssea são vistas e consideradas.
Poderia partilhar connosco os desafios com que se deparam as pessoas que vivem com uma displasia óssea e as famílias, em particular os que resultam de preconceitos sociais?
Duas famílias que vivam a realidade do mesmo diagnóstico, vivem desafios pessoais e intransmissíveis! Mas diria que o impacto de um diagnóstico raro é avassalador. Quando se vai a uma consulta médica, espera-se que haja a identificação do problema e talvez da causa, e acima de tudo, espera-se a prescrição de um tratamento ou de um medicamento para que a situação se resolva. Quando uma família é confrontada com um diagnóstico de uma displasia óssea, para 99% dos diagnósticos não existe um tratamento ou medicamento, nem há sequer investigação a decorrer. E a sensação de impotência e fragilidade é avassaladora. Depois, o pai e a mãe podem reagir de forma completamente distinta ao diagnóstico. Contudo, para lá de todos os desafios relacionados com as complexidades médicas, algo que aproxima as experiências de vida de muitas famílias é perceber com melhor a diferença física, que é de facto o mais comum que existe, mas num registo muito mais desafiador e dos desafios futuros que trará. E com isto reverto para a primeira pergunta e resposta desta entrevista.
Explique-nos a importância de reconhecer os sinais precoces que podem indicar um potencial diagnóstico. Pode explicar por que razão é crucial que as pessoas e os prestadores de cuidados de saúde se mantenham vigilantes e informados sobre estes sinais, especialmente no contexto do diagnóstico de doenças raras?
Existem atualmente 2 centros clínicos em Portugal membros da rede europeia de doenças ósseas raras, os Centros Hospitalares Universitários de Coimbra e o Lisboa Norte com o Hospital de S. Maria. A ANDO tem trabalhado em parceria com profissionais de saúde destes e de outros centros hospitalares.
E se há uma década, eram praticamente só médicos geneticistas e ortopedistas a ter contacto e acompanhamento com pessoas com displasia óssea, hoje há nestes dois Centros, equipas multidisciplinares com experiência crescente em Displasias ósseas, há também mais documentos orientadores para displasias específicas e há acesso a medicamentos órfãos em Portugal, para pelo menos 5 displasias ósseas. O diagnóstico atempado é sumamente importante para que as crianças e adultos com displasia óssea possam ter acesso a cuidados diferenciados e mais conhecedores.
Dada a falta de informação acessível para pais e doentes relativamente à acondroplasia, pode explicar como abordou este desafio através da criação de iniciativas como a Beyond Achondroplasia? Como é que o seu trabalho nesta área ajudou a colmatar a lacuna de conhecimento e apoio às pessoas com acondroplasia e suas famílias?
O motivador para começar um blog sobre a acondroplasia foi simplificar informação genética e clínica para que pessoas com qualquer nível de escolaridade pudesse ler e perceber o que é a acondroplasia. Quando me deparei com o diagnóstico, passei quase todos os serões a pesquisar informação e ler os artigos que encontrava, a quase totalidade em inglês e com terminologia muito técnica. Ajudou ter conhecimentos fundamentais de biologia, genética e farmacologia para criar o blog, e facilitar uma leitura mais acessível. E foi uma surpresa enorme receber contato e perguntas de pessoas de todas as partes do mundo, pais, professores e profissionais de saúde. Menos de um ano após ter criado o “Beyond Achondroplasia” o blog tinha sido acedido por IPs em 189 países e atualmente está convertido num site, com mais de 2,5 milhões de visualizações, e disponível em 4 idiomas. Atualmente, há inúmeros sites com informação sobre acondroplasia. Espero somente ter contribuído para facilitar informação às pessoas, principalmente quando a informação era mais escassa.
“E será com base numa educação aberta e de cidadania, com aceitação natural da diferença física e da utilização de uma linguagem que valorize todos e cada um, que conseguiremos chegar a um tempo em que as pessoas com displasia óssea terão “somente” de enfrentar desafios clínicos, mas não sociais”
Que papel considera que a sociedade civil e o Estado devem desempenhar na promoção de uma maior inclusão dos indivíduos com displasia óssea? Pode indicar medidas ou iniciativas específicas que, na sua opinião, poderiam ser implementadas no território ou nas rotinas comuns para melhorar a vida diária destas pessoas?
A sociedade civil abarca a todos, Estado incluído, que por sua vez tem um papel fundamental na inclusão e apoio a todos os cidadãos que vivem com uma doença ou condição rara, crónica e permanente.
Por parte do Estado espera-se legislação ajustada à realidade, adequada, eficiente, exequível, e organizada, em linguagem acessível ao cidadão, independentemente do seu percurso escolar e académico, e cujo conhecimento e compreensão da mesma exista nos diferentes locais públicos (Centros de Segurança Social, Centros de Saúde familiar, Hospitais e Agrupamentos Escolares).
O apoio financeiro e laboral às famílias, muitos já inscritos como cuidadores informais, e às próprias pessoas que vivem com uma condição rara, tem de ser desburocratizado. Tem de ser a regra e não a exceção. Têm de ser aprovados apoios desde o diagnóstico e não apenas por períodos definidos, porque embora exista tratamento para 5% das 7000 doenças raras conhecidas, nenhum é curativo. Ter uma displasia óssea é para toda a vida e os legisladores têm de validar essa realidade e pôr um fim a processos intermináveis e altamente burocráticos para acesso a apoios financeiros, sociais, educativos e clínicos.
A inclusão e valorização social de pessoas com displasia óssea é um processo que envolve todos, famílias, escolas, sociedade em geral. E será com base numa educação aberta e de cidadania, com aceitação natural da diferença física e da utilização de uma linguagem que valorize todos e cada um, que conseguiremos chegar a um tempo em que as pessoas com displasia óssea terão “somente” de enfrentar desafios clínicos, mas não sociais.
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