Susana Chasse

Susana Chasse

“Vivemos em tempos de uma permissividade total na relação com o corpo e a sua exposição. É admissível um adulto ou menor sexualizar o seu corpo numa rede social, mas é ofensivo ver a estátua de David, nu, exposta. É pura demagogia.”

Seja bem-vindo a um diálogo esclarecedor com Susana Chasse, artista plástica e professora de desenho cuja trajectória de vida é tão rica e diversa quanto os traços que aplica à sua arte. Mestre em Design Visual pelo IADE, a exploração do desenho por Susana Chasse transcende o convencional, como se pode verificar no seu tema de tese “O Desenho como Meditação: O Olhar que Contempla”. A sua biografia construiu-se com diversos encontros, desde a direção de arte em publicidade, meditação, dança até ao domínio matizado do Shiatsu. Cada capítulo, contribuiu para a sua compreensão multifacetada de exprimir, ver e criar. A pintura e o desenho são companheiros constantes no seu percurso, materializados através de exposições individuais e colectivas, em Portugal e internacionalmente. A sua carreira é pontuada por prémios que reconhecem a arte e a dedicação na captura dos momentos intangíveis que definem o seu trabalho.

A sua afirmação de que “quanto maior for o despojamento de conceitos e preconceitos, maior será a capacidade de visão” serve como nosso fio condutor neste diálogo. Junte-se a nós enquanto desvendamos as nuances da expressão artística, da empatia e da luta contra o preconceito, mergulhando num diálogo que procura transcender a tela e ressoar no âmago da nossa humanidade.

Pode partilhar connosco o seu percurso pessoal e profissional e desvendar quais as experiências que a moldaram como indivíduo, artista e professora?

Existiu um momento, uma experiência que alterou a minha consciência e a minha vida. Tinha 18 anos e terminava as aulas na SNBA, depois de horas a desenhar modelo, fui para o metro de Lisboa, por volta da meia –noite… de repente, tudo se transformou em linhas. As pessoas, árvores, edifícios, objectos. Tudo eram planos, luz-sombra, as texturas eram linhas, eu era linhas… foi nesse momento que se tornou claro na minha mente a abstracção que em tudo existe e é, quando retiramos o nome, conceito e as transformamos em linhas.

A maior experiencia de todas, que é transversal enquanto individuo, artista e professora é a observação, ver o que é visível mas sobretudo o invisível, na relação comigo, na relação com o outro, na relação com o meio e com tudo aquilo que aparentemente nos rodeia. É nesse olhar que encontro sentido para fazer o que faço, ser o que sou. A contemplação é o fio condutor e aglutinador do meu percurso pessoal e profissional. Desde cedo tenho essa consciência de mim, desse estar, da observação, da empatia, da compreensão do que aparentemente é diferente, mas que tudo tem em comum comigo e com todos.

Na sua experiência como professora de desenho, poderia explicar-nos o significado da introdução de modelos nus na educação artística?

O modelo Nu para mim, foi uma necessidade inerente à profundidade e entendimento da vida. Lembro-me com 18 anos, na primeira aula de desenho na S.N.B.A. (curso em que me inscrevi porque queria desenhar, mas que li na diagonal o seu conteúdo), estar sentada com o cavalete no colo e eis senão quando salta para o estrado um homem nu para desenhar. Não sabia para o que ia, mas sei que em pouco tempo a minha cabeça mudou de “um homem nu para desenhar” para não existir diferença entre eu, o modelo, as linhas, as manchas, o lápis, tudo era o mesmo, sem limites ou conceitos que os definissem. Mais tarde, no ano a seguir, já como assistente de desenho, lembro-me num intervalo estar a conversar com esse mesmo modelo, só com as botas calçadas enquanto enrolava um cigarro, quando alguém passou e fez um reparo sobre o facto do modelo estar nu, só aí me apercebi, e naquele momento senti como era confortável estar a conversar assim, sem conceitos nem preconceitos. Estar no prazer do tema de conversa. Este é um exemplo entre muitos, sobre a observação, dentro e fora de mim. Mais tarde em 2007 quando iniciei os meus próprios cursos noutro local, percebi que o modelo nu era o elo de ligação entre o desenho, eu e os alunos, que funcionava como uma meditação aquela trindade. Que nos exige muitos mais que a observação, exige também contemplação, coloca-nos em ligação com a vulnerabilidade de um ser, de um corpo, corpo igual ao nosso, pouco visto, ensina-nos a visão para além desse conceito de ser feminina ou masculina, abre-nos a porta profunda do entendimento da linha, sem género, sem etnia, sem peso, sem idade, sem nome. Exige uma percepção pura da visão com uma consciência empática. Tudo isso é possível para mim, através desta experiência do outro, mais do que um objecto. Acredito que o mistério do ser e da sua representação e imortalidade, é aquilo que nos impele para desenhar modelo nu na prática artística. É sempre muito discutível o porquê na génese, talvez por isso prefira cingir-me àquelas que são as minhas escolhas conscientes.

Se repararmos o que levou os nossos antepassados a desenhar o modelo nu, com as suas teorias e proporções, é idêntico na base mas bastante diferente daquilo que nos leva agora a desenhar um modelo nu. Talvez a avidez de querer representar o ser humano se mantenha da mesma forma, às vezes por capricho ou vaidade, outras vezes pelo entendimento real e profundo do corpo humano.

“O desconhecido para uma mente aberta e empática é uma oportunidade de crescimento e enriquecimento. Para uma mente fechada, com conceitos pré-definidos e não empática é motivo de receio, desconforto ou resistência.”

Mencionou a abstração do olhar no desenho. Pode explicar-nos de que forma este conceito purifica o ato de observação, libertando-o de conceitos pré-concebidos ou preconceitos ao desenhar o corpo humano nu?

A abstracção aparece pela observação. À pouco referi que estar nu ou vestido, ser homem ou mulher, era igual para a linha. A linha é em si já uma produção abstracta que a nossa mente cria para representar o que vê. Não existem linhas por aí a passear, assim como essas mesmas linhas são, na sua relação entre si, um conjunto de encontros abstractos que por sua vez nos dão a conhecer, pessoas, objectos, ambientes, proporções, luz-sombra. Tudo sem nome até que no final e como por magia, o nome aparece associado à forma. Não durante, essa preocupação, (pré-ocupação) só nos retira a visão clara, por estar contaminada por conceitos e preconceitos. O próprio desenho de observação não desenha conceitos, artigos indefinidos, (uma rosa, as rosas) desenha aquela rosa especifica e não a ideia que tenho dela. Desenhar o ser humano é quase um teste a esse chamamento de desenhar algo que se pareça com a constante comparação entre o que se pensa que se sabe e o conhecimento perante nós. Largar a ideia que se tem sobre o que é uma mão, e desenhar como se fosse a primeira vez que se viu a mão, é de uma exigência mental e uma disciplina emocional, que só o tempo, prática e consciência concede.

 

Dado que destacou a empatia como parte integrante da aprendizagem do desenho, pode explicar-nos como a empatia poderá ser uma ferramenta não só no acto de criar, mas também no processo de observação e interpretação de uma obra de arte?

A empatia, supostamente, é algo que só os humanos possuem, mas grande parte da sua vida passam sem usar essa ferramenta tão essencial na relação com o todo. A verdadeira empatia abre um portal gigante para o entendimento profundo do mundo. Sentir o que o outro sente, seja humano, animal, vegetal, elemental e a partir daí tomar decisões, porque tudo são decisões mesmo que de pequena escala, que alteram e influenciam todo o desenrolar de acções, dentro e fora de nós. Por consequência, ao observar uma obra de arte a partir de um lugar de entendimento empático faz com que tudo seja mais real, próximo e profundo. Não só o que conhecemos mas também o que desconhecemos. O desconhecido para uma mente aberta e empática é uma oportunidade de crescimento e enriquecimento. Para uma mente fechada, com conceitos pré-definidos e não empática é motivo de receio, desconforto ou resistência.

“A empatia, a subtileza e pureza, são qualidades pouco exigidas no dia-a-dia, mas que são fundamentais para uma convivência humana na sua amplitude máxima.”

Afirma que a nudez é uma forma despojada e clara de comunicar linhas. Pode aprofundar o purismo desta comunicação, especialmente para as pessoas que a encontram pela primeira vez, criadores e espectadores?

Um corpo nu é de uma força inigualável. Move-se lentamente, rapidamente, bruscamente, adormece, contorce-se de dor, de alegria, tristeza, espanto, subtileza, doçura, tem tanto que não pode ser interrompido por outra linha forasteira de qualquer peça de roupa. A beleza da linha contínua de quem repousa só é entendida na sua amplitude máxima se não for interrompida ou quebrada. Existe uma subtileza e uma pureza que nos é desvendada neste tipo de observação. A empatia, a subtileza e pureza são qualidades pouco exigidas no dia-a-dia, mas que são fundamentais para uma convivência humana na sua amplitude máxima. Esse purismo aproxima-nos daquilo que são qualidades que só os seres humanos têm, mas que por vezes não chegam a vivenciar. Esta exigência impele-nos a sair da zona de conforto e ao mesmo tempo obriga-nos a tocar numa parte muito mais rica e profunda em nós, a que podemos chamar O caminho para uma experiência de totalidade que só será alcançada se for livre de conceitos. A nudez, um corpo livre de roupas, também é uma forma clara de ver sem camadas. O vestuário traz com ele carga e associação de pensamentos e até de preconceitos, logo a nossa atenção é desviada para algo irrelevante. Traz também uma difícil leitura daquele corpo que se move, altera proporções, cinge movimentos, apaga ligações entre membros, enfim… é um entrave à comunicação que se pretende clara, nomeadamente quando estamos a falar de um iniciado na disciplina. No desenho, como na vida há que observar o essencial sem conceitos, camadas e ideias que nos toldam a clareza, sendo o olhar renovado e fresco fundamental para ver o real.

“Sociedades cujos valores se pautem pela não consideração do corpo, mulher ou homem, onde não se pode expressar a sexualidade de uma forma natural como parte essencial do ser humano, o corpo será sempre visto como objecto de desejo, de desconforto ou estranheza.”

À luz de casos recentes em que obras de arte foram objecto de pedidos de remoção devido a alegações de ofensividade ou de confusão com pornografia, qual é a sua percepção sobre estas questões? Mais concretamente, como consegue encontrar um equilíbrio entre a expressão artística e as sensibilidades sociais e culturais?

No seguimento da ideia de abstracção e do despojamento de conceitos logo de preconceitos a percepção do receptor é só e unicamente reflexo e espelho do que são as suas crenças, ideias pré-concebidas, traumas, educação, cultura, género e idade. O equilíbrio entre a expressão artística e sensibilidade social é algo que existirá numa fracção de tempo, momentaneamente, como todo o equilíbrio que depende de factores exteriores. O que é considerado um corpo nu artisticamente num local do planeta será sempre considerado pornografia noutro, basta que esse corpo seja visto dentro de conceitos que não a sua essência. Sociedades cujos valores se pautem pela não consideração do corpo, mulher ou homem, onde não se pode expressar a sexualidade de uma forma natural como parte essencial do ser humano, o corpo será sempre visto como objecto de desejo, de desconforto ou estranheza. Um trauma colectivo terá sempre uma abordagem desequilibrada a um corpo nu. Cultura, tradições estão enraizadas profundamente, não se alteram numa geração, portanto a homogeneidade é algo que não acredito que seja algo a perseguir. Na realidade o que é a uniformidade equilibrada senão um conjunto de conceitos e regras aceites por uma determinada cultura ou comunidade? Onde está o equilíbrio, o certo ou errado? Num museu, uma obra é exposta, comprovadamente considerada uma obra de arte pela comunidade artística, logo a obra é exposta, não será um leigo transeunte a decidir que a obra deverá ser retirada do museu. O equilíbrio aqui será manter a obra e ignorar comentários não fundamentados a não ser no achismo do preconceito, trauma ou deslumbramento.

Afirma que no Desenho “Ser homem ou mulher é indiferente, porque as linhas não têm sexo”. No contexto do nosso festival dedicado à desconstrução do preconceito, vê a possibilidade de este conceito transcender o domínio da arte e tornar-se uma ferramenta formidável na luta mais alargada contra o preconceito? Será que a adopção desse conceito promove a sensibilidade necessária para, apenas limitarmo-nos a observar a forma humana sem sucumbir a juízos pré-concebidos?

Eu gosto dessa ideia deste conceito transcender o desenho, na realidade esse foi sempre o pensamento inerente à abstracção, sem limites de sala de aula. Desenho é vida, está em tudo e em todo o lado. Tudo o que vemos construído pelo homem, foi antes uma ideia que se desenhou e materializou. Foram linhas mentais que encontraram o papel e se materializaram. Quando olhamos para algo na natureza, vemos linhas sem género. São linhas que desenham uma rosa, uma árvore, um animal…são linhas puras sem carga sexual, bonito ou feio, velho ou novo. A beleza de abarcar toda a essência numa linha sem a espartilhar ou criar caixas ou partes, é fundamental. O todo é incluído na observação, não podemos categorizar o que observamos, penso que só assim poderemos ver o outro na sua totalidade. E sim, é uma forma de aproximação quanto a mim muito válida.

“Uma obra de arte desafia as normas da sociedade menos que a própria sociedade desafia os limites do admissível”

Ainda sobre este tema, e para concluir, a sua afirmação de que “Quanto maior for o despojamento de conceitos e preconceitos, maior a capacidade de visão”, como é que entende que a eliminação de noções preconcebidas aumenta a nossa capacidade de ver e apreciar verdadeiramente a arte, particularmente quando esta desafia as normas sociais, como a nudez?

Vivemos em tempos de uma permissividade total na relação com o corpo e a sua exposição. É admissível um adulto ou menor sexualizar o seu corpo numa rede social, mas é ofensivo ver a estátua de David, nu, exposta. É pura demagogia. Uma obra de arte desafia as normas da sociedade menos que a própria sociedade desafia os limites do admissível. Testemunhamos actos de violência física, abuso sexual, exposições gráficas ofensivas com imagens que passam insistentemente nos meios de comunicação ou redes sociais, mas depois questiona-se uma exposição de pintura ou desenho sobre o corpo humano. Mais uma vez puro contra senso. Uma visão informada, nomeadamente apresentação do contexto cultural da obra de arte, do artista, da época e contexto, conduzirá a uma visão potenciada e poderemos entender essa representação artística, no caso em particular, a nudez. Se a visão é baseada em conceitos e preconceitos de quem vê, dentro daquilo que é o seu universo pessoal, poderá só ver aquilo que sabe e por isso ter uma visão pouco abrangente e inteirada.

geral@festivalimpacto.org

| Política de privacidade e cookies | © 2024 Festival Impacto