Temos a honra de entrevistar Soraya Nour Sckell, Professora Catedrática da NOVA School of Law e investigadora pioneira em cosmopolitismo, justiça e democracia. O seu trabalho sobre o “cosmopolitismo crítico” tem despertado novas perspectivas sobre o preconceito, a justiça e a nossa sociedade global interligada. Nesta entrevista, aprofundamos as profundas percepções de Soraya Nour Sckell, o impacto da sua investigação e a forma como o seu trabalho oferece uma perspectiva única sobre o combate ao preconceito no nosso mundo interligado. Convidamo-lo a juntar-se a nós para explorarmos o poder transformador do cosmopolitismo crítico e o seu papel na construção de um futuro global mais justo, democrático e inclusivo.
O seu trabalho aborda o conceito de “eu cosmopolita”. Poderia explicar-nos melhor o que este conceito implica e como se relaciona com a abordagem de questões, como o nacionalismo, o racismo, a xenofobia e o sexismo?
Na Antiguidade, a ideia de cosmopolitismo referia-se ao ideal moral de uma comunidade universal de seres humanos independentemente de seus vínculos com comunidades particulares. Mas este ideal defronta-se na psique com vínculos exclusivos, como o nacionalismo, o racismo, o sexismo etc. A dificuldade é: como combater estas diversas formas de discriminação? Alguns autores consideram que o espaço público deve ser neutro às condições particulares nas quais cada qual se encontra e referir-se apenas a valores universais. Para outros, contudo, essa neutralidade é impossível, uma vez que a política e a justiça sempre legitimam discriminações. Seria então antes necessário analisar, tal como faz o filósofo Etienne Balibar, como cada Estado produz uma “comunidade”, inventa uma etnicidade, e com ela um racismo. O cosmopolitismo crítico levaria em conta o que Balibar chama de “identidades ambíguas” – que não podem ser reduzidas a nenhuma comunidade homogénea, que transitam entre várias comunidades, que ‘traduzem’ mundos diferentes. A tradução, entendida neste sentido amplo, é um pré-requisito para o universalismo eficaz, para a construção de um “eu cosmopolita”.
“A primeira dimensão do cosmopolitismo é a do “eu cosmopolita”. Seu reverso é a discriminação como ideologia ou visão de mundo: nacionalismo, racismo, xenofobia, sexismo etc, ou seja, a discriminação que pode ser analisada em um “indivíduo”
A ideia de “democracia local cosmopolita” desafia as teorias democráticas tradicionais. Pode explicar-nos como é que esta ideia redefine os princípios da democracia e por que é que é importante para abordar questões globais, como as alterações climáticas e os direitos humanos?
O cosmopolitismo crítico analisa as condições pelas quais mesmo uma política local territorialmente limitada considera as suas consequências para os seres humanos (incluindo as gerações futuras) como tal e não como membros de um determinado Estado. É especialmente a política local que deve ser cosmopolita, respeitando o meio ambiente (e assim buscando também, por exemplo, combater os efeitos catastróficos das alterações climáticas) bem como os direitos humanos civis, políticos, sociais, económicos e culturais dos habitantes de um determinado território, independentemente da sua cidadania. Uma democracia local cosmopolita não deve esperar pelo desenvolvimento de uma estrutura política cosmopolita fora ou acima dela.
O “direito cosmopolita” é um aspeto importante da sua investigação. Em que é que difere do direito internacional convencional centrado no Estado e quais são as suas implicações para a proteção dos direitos e responsabilidades individuais à escala global?
O Direito Cosmopolita relaciona-se à consagração do indivíduo como sujeito do direito internacional, especialmente no que se refere aos direitos humanos e ao direito penal internacional, mas também em áreas como direitos das minorias, direito ambiental e patrimônio comum da humanidade. O direito internacional moderno é baseado na ficção do Estado ser como um indivíduo. Este direito é produzido por Estados e dirige-se a Estados. A questão é como conceber situações na qual um indivíduo pode ser considerado sujeito de direito internacional, portador de direitos e responsabilidades na cena internacional independentemente de um determinado Estado. Há por excelência duas situações internacionais jurídicas na qual isso ocorre: no caso do direito à petição individual em matéria de direitos humanos e direitos trabalhistas em fóruns internacionais e no caso da responsabilidade individual por crimes internacionais.
“O direito internacional moderno é baseado na ficção do Estado ser como um indivíduo. Este direito é produzido por Estados e dirige-se a Estados.”
A “Cosmopolítica” introduz a noção de “cidadania cosmopolita transfronteiriça”. Como é que esta noção redefine o entendimento tradicional de cidadania e que papel desempenha na capacitação dos indivíduos para se envolverem em associações transnacionais?
A teoria política moderna concebeu o exercício da cidadania democrática e da representação legítima como sendo plenamente exercidas apenas no quadro das instituições políticas locais, mas a teoria da justiça tem vindo a desenvolver-se cada vez mais nos últimos anos para conceber novas formas de democracia e cidadania, que possam ser exercidas não apenas no Estado como também para além dele. O cosmopolitismo torna-se por esse meio, como diz o filósofo Etienne Balibar, cosmopolítica. A cidadania cosmopolita não existe como um estatuto jurídico e político, mas como prática de associações transfronteiriças de indivíduos em qualquer forma de organização (institucionalizada ou não).
No mundo atual, as questões relacionadas com o preconceito são de extrema importância. Como é que as cinco dimensões do cosmopolitismo crítico que descreveu na Conferência, de outono de 2023, em Literatura, Humanismo e Cosmopolitismo da Universidade Aberta, oferecem um quadro para abordar e combater os preconceitos, tanto a nível individual como global?
A primeira dimensão do cosmopolitismo é a do “eu cosmopolita”. Seu reverso é a discriminação como ideologia ou visão de mundo: nacionalismo, racismo, xenofobia, sexismo etc, ou seja, a discriminação que pode ser analisada em um “indivíduo”. A segunda dimensão do cosmopolitismo crítico é da “democracia local cosmopolita”. Seu reverso é a discriminação institucional – ou seja, a discriminação que pode ser analisada também no funcionamento de instituições de pequena dimensão. A terceira dimensão é a do “direito cosmopolita”. Seu reverso é a discriminação sistemática e a discriminação estrutural, ou seja, que permeia toda uma sociedade, todo um Estado – e por isso é o Estado que é julgado em fóruns internacionais por tolerar de modo sistemático discriminações (por exemplo, por tolerar sistematicamente que seus tribunais desvalorizem a violência doméstica). A quarta dimensão é a da “cosmopolítica”, que legitima toda forma de reivindicação de direitos, do “direito a ter direitos” (Arendt) de quem não tem direitos. A quinta dimensão é o “ecocentrismo”. Seu reverso é a discriminação antropocêntrica.
O seu trabalho aborda questões profundas e complexas relacionadas com a justiça global e a cidadania. Poderia partilhar uma experiência pessoal ou um momento da sua carreira em que tenha sentido um impacto direto na vida de alguém ou na forma como a sociedade encara estas questões?
As diversas formas de discriminação que eu estudo estruturam nossas sociedades contemporâneas, de modo que têm um impacto direto na vida das pessoas. Apesar das pessoas discriminadas serem chamadas às vezes de “minorias”, constituem a grande maioria numérica. Há formas de discriminação que implicam uma violência verbal ou física explícita, o que causa no espaço público das sociedades democráticas uma forte indignação. Mas a grande violência está na desigualdade e hierarquia social quotidiana (chamada de violência institucional, sistémica ou estrutural), que é vista como natural pela maior parte das pessoas, mesmo pelas vítimas. Muitas pessoas (e mesmo as vítimas das discriminações) consideram que não há o que fazer – para não referir as que consideram certas formas de desigualdade como até mesmo sendo justas ou questões indiferentes à justiça.
A filosofia de Kant influenciou significativamente o conceito de cidadania cosmopolita europeia. Como é que a filosofia, moral e política, de Kant contribui para a nossa compreensão do que significa ser um cidadão europeu cosmopolita e como é que as suas ideias nos podem guiar na abordagem dos desafios e preconceitos globais contemporâneos?
Kant aboliu todo tipo de conceção substancialista ou essencialista do ser humano (o que justificava hierarquias sociais). Além disso, fundou o conceito racional de direito cosmopolita (o cosmopolitismo era até então apenas uma visão moral de mundo, relacionada ao “eu cosmopolita”). Por fim, Kant encontrou uma demonstração de que o cosmopolitismo poderia se tornar uma realidade na simpatia que os entusiastas “espectadores” no estrangeiro sentiam pelos revolucionários franceses que lutavam por um ideal de liberdade.
Como reflexão final, num mundo em constante mudança e interligado, quais são, na sua opinião, os passos mais importantes para que os indivíduos e as sociedades adoptem os princípios do cosmopolitismo crítico e avancem para um futuro global mais justo, democrático e inclusivo?
Três tipos de política distintos, mas intrinsecamente relacionados, revelam-se então como os passos necessários para a construção de um mundo comum verdadeiramente cosmopolita: o primeiro passo consiste numa política de conquista, interpretação e densificação de direitos, na legislação, na jurisprudência e na doutrina jurídica, que amplie as dimensões da liberdade e da igualdade, ou do que Balibar chamou de “igualiberdade”; o segundo passo consiste numa política de combate e transformação de estruturas socioeconómicas e instituições político-jurídicas impregnadas de discriminações; por fim, o terceiro passo consiste numa política de “civilidade” nos conflitos gerados por discriminações, o que implica reconstrução das visões de mundo, de si próprio e dos outros, tanto dos discriminadores como das vítimas – no caso destas, “empoderamento” enquanto política e prática de reconstrução de si .
Soraya Nour Skell é Professora Catedrática da NOVA School of Law, subdiretora no CEDIS (NOVA School of Law) e investigadora no Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa. Foi Investigadora Principal do projeto “Cosmopolitismo: justiça, democracia e cidadania sem fronteiras”.
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