Bruno Neto

Bruno Neto

“Trabalhar em projetos humanitários é, normalmente, sempre em contextos extremamente complicados e em cenários com grandes níveis de imprevisibilidade”

Temos, hoje, a honra de entrevistar Bruno G. Neto, um homem de realizações notáveis e empenhado na melhoria da nossa comunidade global. Para além do seu extenso trabalho humanitário e do seu profundo impacto, Bruno G. Neto recebeu a merecida honra de ser distinguido pelo Presidente da República Portuguesa como Cavaleiro da Ordem da Liberdade em 2015. Esta prestigiada Ordem Honorífica Portuguesa é concedida aos que dedicaram as suas vidas aos valores da civilização, da dignidade humana e da causa da liberdade.

Enquanto Consultor de Estratégia, Liderança e Gestão, o percurso notável de Bruno G. Neto estende-se por mais de 19 anos de experiência profissional internacional. Os seus esforços incansáveis tocaram os domínios da saúde pública, educação e redução da pobreza na América Latina, África, Ásia e Europa. O que torna a história de Bruno G. Neto verdadeiramente excecional é a sua capacidade de navegar pelas complexidades do trabalho em países em conflito, pós-conflito e em desenvolvimento, fazendo a ponte entre os sectores público, privado e sem fins lucrativos.

Na entrevista de hoje, exploramos não só os esforços profissionais de Bruno G. Neto, mas também os aspectos profundamente pessoais do seu percurso de vida. Aprofundamos as suas inspirações, os seus valores e as lições inestimáveis que adquiriu com a sua existência nómada, enquanto discutimos a forma como o seu trabalho desafia os preconceitos e cultiva a mudança positiva.

Já viajou pelo mundo e trabalhou em diversos locais, mas poderia falar-nos um pouco do seu percurso pessoal desde a sua cidade natal, Tramagal, até ao seu atual cargo no Office for the Coordination of Humanitarian Affairs (OCHA) das Nações Unidas? O que é que o inspirou a seguir este caminho extraordinário?

Tudo começou no Tramagal (Abrantes) que é uma terra com uma vida comunitária muito activa e com muitas associações e por essa razão, é normal que qualquer pessoa da comunidade, pertença aos corpos diretivos ou participe com muita regularidade na vida associativa.  Não foi estranho, portanto, que em 1998, juntamente com outros 30 amigos formássemos uma associação juvenil de apoio ao desenvolvimento local – Cistus. Para além de trabalharmos para o desenvolvimento local e na vertente cultural (organizámos vários festivais interculturais), ao mesmo tempo, começámos a fazer intercâmbios com países da europa e do mediterrâneo. Fez exatamente no mês de janeiro de 2024, 20 anos que iniciei a minha experiência internacional, ao participar num intercâmbio de jovens na Jordânia, liderando a equipa de jovens portugueses. O intercâmbio correu bem, desempenhei bem o meu papel na organização e, como tinha acabado de terminar a universidade, fui convidado para fazer voluntariado por um ano em Amã. Foi a partir de daí que comecei a trabalhar, que entendi que poderia ser algo mais do que aquele rapaz do Tramagal que ouviu a vida toda – nunca serás ninguém, e foi, também, aí que me apaixonei pelo conceito do “outro”, e que entendi que poderia ter impacto com o meu trabalho e ao mesmo tempo crescer como pessoa e como profissional. Entendi, então, que o mundo era, realmente, redondo e que até agora nunca parou de girar.

Trabalhar em projectos humanitários em ambientes difíceis pode ser emocional e fisicamente exigente. Pode falar-nos sobre as motivações e os valores pessoais que o levam a continuar o seu trabalho, apesar dos desafios, e de que forma isso se relaciona com o seu empenhamento na mudança de mentalidades?

Trabalhar em projetos humanitários é, normalmente, sempre em contextos extremamente complicados e em cenários com grandes níveis de imprevisibilidade. É esse constante desafio que faz com que eu trabalhe com muita intensidade, nem sempre com muitos recursos, obrigando-me a aprender muito rapidamente, a compreender os contextos, as equipas, os projetos e com isso, encontrar, prontamente, soluções para ajudar a resolver as questões humanitárias. Esse constante desafio, para mim, sempre foi fundamental e fulcral, pois a partir do momento que sinta que já não estou a aprender, sei que é tempo de mudar. Por essa razão e por uma questão de política muito pessoal, não assino contratos de mais de 6 meses, e no final desses 6 meses, avalio o meu nível de felicidade pessoal e profissional, analizando se vale a pena continuar, se continuo a aprender, a ser desafiado e se o meu trabalho de base foi completado. Caso sinta que deixo um sistema de gestão organizado e funcional, é então, a altura de mudar.  Esta é a minha forma de estar, e por isso entendo, que um dos principais fatores para que se compreenda o “lado B” do mundo, seja a mudança das mentalidades. Esse “lado B” acaba por ser a paixão que trago muitas vezes para o “lado A”, desafiando as pessoas que vivem num mundo privilegiado, com muito pouca noção do que é a vida da maior parte das pessoas desse tal “lado B”. É esse gap, que sinto como parte da minha missão. Chegar cá, criar desconforto e trazer a visão composta por todas as minhas experiências em mais de 40 países e fazer com que esse desconforto se torne um processo que provoque nas pessoas, um questionamento e quem sabe, uma mudança de mentalidade.

“muitas das pessoas que tenho desafiado (espero que positivamente) acabam por por ficar mais atentas, a questionar mais aquilo que ouvem nos meios de comunicação e no mundo à sua volta”

Com a sua vasta experiência de trabalho em projectos humanitários em todo o mundo, testemunhou o impacto do preconceito em inúmeras pessoas. Pode partilhar um exemplo particularmente poderoso de como desafiar esses preconceitos levou a uma mudança positiva e à capacitação de uma comunidade ou de um indivíduo?

A mudança de mentalidade é um processo bastante longo e complexo. Na maior parte das vezes, não acontece pelo confronto direto mas sim por por uma argumentação inteligente, que faça ou que crie, um natural contraditório em que a pessoa que ouve, acabe eventualmente por questionar o seu ponto de vista. Este é sempre um ponto de partida e não apenas um ponto chegada e isso faz com que a mudança de mentalidade seja um processo, um caminho e na maior parte das vezes, a mudança dos paradigmas pessoais. É nessa complexa realidade que eu gosto de “jogar”, ao fazer com que as pessoas questionem os seus pontos de partida e façam ou comecem, um caminho diferente e mais desconfortável. Muitas das pessoas que tenho desafiado (espero que positivamente) acabam por por ficar mais atentas, a questionar mais aquilo que ouvem nos meios de comunicação e no mundo à sua volta. É interessante, que muitas pessoas me abordam, seja através das redes sociais seja pessoalmente, e partilhem as suas novas ideias e de como agora questionam com algum orgulho os seus paradigmas e o mundo.

“temos de ter mais políticas e programas para criar uma democracia participativa, porque se as pessoas não participam na urbe, na politica e na vida comunitária, jamais entenderão o porquê dos impostos, das políticas e das leis”

Os preconceitos cruzam-se, frequentemente, com questões de acesso à educação, aos cuidados de saúde e aos serviços sociais. Como analisa o papel da ajuda humanitária e da advocacia na resolução destes desafios que se cruzam e na garantia de igualdade de oportunidades para as comunidades marginalizadas?

A ajuda humanitária é apenas um trabalho paliativo e quase nunca uma solução profunda dos problemas, pois é apenas uma reacção para a resolução de um problema muito específico – seja ele criado pela “civilização humana” ou por catastrofes naturais. Nunca é numa situação extrema que se consegue desenvolver uma sociedade mais justa, mais igualitária ou uma sociedade que possa criar valor. O acesso à educação, cuidados de saúde, serviços sociais ou culturais são fundamentais para termos uma sociedade justa, sustentável e mais saudável. Para isso teremos sempre de ter noção das diferenças, pontos de partida de cada pessoa e de cada grupo social. Será muito complicado alcançar soluções, que sejam suficientemente fortes, para construir, garantir serviços e o seu respectivo acesso sem conhecermos as pessoas utilizadoras. Essa construção, nunca poderá ser feita ou aplicada, apenas e através de medidas do topo para a base, mas sim construídas pontes entre a base e o topo, em termos políticos quer dizer que devemos ter a uma democracia representativa. Temos de ter mais políticas e programas para criar uma democracia participativa, porque se as pessoas não participam na urbe, na politica e na vida comunitária, jamais entenderão o porquê dos impostos, das políticas e das leis, havendo este entendimento e participação, todos estes processos passam a ser cada vez mais democráticos.  As pessoas não estarão apenas a pagar impostos mas estarão também elas próprias envolvidas na aplicação desse impostos, dessas medidas e nas soluções que ajudam a criar condições para uma sociedade mais consciente e com bases fortes de cidadania.

Nas suas experiências e encontros com pessoas de diversas culturas, houve algum momento ou indivíduo que lhe tenha causado um impacto duradouro e como é que essas experiências moldaram a sua perspectiva sobre a humanidade e o mundo?

Todas as pessoas com que eu trabalhei, todas as pessoas com que eu lidei, com quem eu me sentei numa cadeira ou no chão, ou simplesmente na troca de olhares ou de palavras em línguas estranhas, tiveram um impacto brutal e de grande intensidade. É nessa profundidade de todos estes contactos e de todas essas interações que eu deixo de ser “apenas” eu, e automaticamente deixo de ser apenas do Tramagal, de Portugal e passe a ser um pouco todas as pessoas com quem contactei, com quem eu lidei e todas as culturas em que eu vivi. Como diria Nietzsche – “no fundo, sou todos os nomes da história” quer esta história se escreva com h ou se for, apenas, um conjunto de estórias que terei para contar aos meus filhos e aos meus netos.

“aquilo que eu posso aconselhar é serem sempre fiéis à bondade, à justiça e a liberdade, e dessa forma, seja em que lado for, neste complexo cubismo social, possam garantir que tanto a sua geração, como as gerações vindouras, tenham um propósito de serem melhores”

Os jovens aspiram, frequentemente, a ter um impacto positivo no mundo. Que conselhos daria a um jovem com ambições de seguir um caminho como o seu, especialmente em alcançar, uma carreira que dê prioridade à ajuda humanitária e ao impacto global?

Não tenho muitos conselhos para dar porque cada vida é uma vida e cada postura é uma postura. Os meus avós que quase sempre viveram em modo sobrevivência, nunca tiveram como objetivo fazer ajuda humanitária,mudar ou viajar o mundo, quiseram sobretudo garantir que tanto eles como os seus filhos, como os seus netos, fossem boas pessoas, decentes e com dignidade, que percebessem que a sua vida é maior do que a sua própria existência. Aquilo que eu posso aconselhar é serem sempre fiéis à bondade, à justiça e a liberdade, e dessa forma, seja em que lado for, neste complexo cubismo social, possam garantir que tanto a sua geração, como as gerações vindouras, tenham um propósito de serem melhores, sempre tendo noção de que o mundo é “redondo” e que não há causa sem consequência.

O Festival Impacto tem como objetivo desafiar e desconstruir preconceitos sociais. Como humanitário e filantropo experiente, que mensagem ou visão gostaria de partilhar com o nosso público sobre a importância dos esforços colectivos para impulsionar mudanças positivas e promover um mundo mais inclusivo e equitativo?

A existência que não contempla a questão.. é o contrário de todas as respostas.

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