Amélia Amil

Amélia Amil

"A Língua Gestual não é universal, cada país tem a sua. Porquê? Uma interrogação constante. Ao longo do meu trabalho desfiz este mito milhares de vezes, a língua gestual, é uma língua visual tendo a sua génese na cultura local."

Hoje temos a honra de conversar com Amélia Amil. Desde 1985, tem estado na linha da frente dos esforços para estabelecer a Língua Gestual Portuguesa como uma forma de comunicação respeitada e reconhecida. O percurso de Amélia Amil tem sido marcado pela sua vasta experiência de interpretação e pelo seu papel como catalisadora de mudanças sociais, como por exemplo, a sua participação na produção do primeiro dicionário de Língua Gestual Portuguesa, “GESTUÁRIO”, publicado pela SNR – DGEB em 1991.

O legado de Amélia Amil caracteriza-se pela sua abordagem multifacetada à defesa dos direitos da comunidade surda, desde iniciativas educativas, representação nos meios de comunicação social (foi a primeira intérprete de língua gestual na RTP1 Norte e mantem hoje a sua presença enquanto intérprete residente de Língua Gestual no PORTO CANAL) até ao seu empenho contínuo como intérprete de língua gestual para diversos eventos assim como para diversas associações, como por exemplo, o Centro de Apoio aos Sem Abrigo (CASA).

 

Tendo em conta a sua experiência enquanto CODA – Children of Deaf Adult (filha de Pais Surdos nativos de Língua Gestual), pode partilhar connosco experiências específicas ou destacar pessoas que desempenharam um papel importante na formação da sua identidade, valores e no seu empenho nesta causa?

 

Cada pessoa CODA, viveu a sua experiência. No meu caso, vivi no seio de uma família de parcos recursos económicos. Muitas dificuldades financeiras, uma família muito reduzida e a terceira filha num total de quatro filhas.
Assim que tive consciência da minha identidade, entendi que, tinha de cuidar de mim e dos meus pais e mais tarde de uma irmã mais nova. Eu era o apoio dos meus pais e de mim própria, era eu a ponte de comunicação em Língua Gestual dos meus pais para o mundo.
Foi uma infância completamente engolida. Muito entregue à minha sorte. Tinha todos os ingredientes para ser potenciada em mim uma marginalidade infernal. No entanto vivi no inferno, tentando acreditar que poderia chegar ao paraíso. A esperança foi sempre a minha inspiração. Desde tenra idade, não sabia o que queria da vida, mas sabia convictamente o que não queria. Ter vivido o drama de ter sido vítima de abusos, que silenciei a medo, na adolescência que acabei por não viver. A palavra responsabilidade em mim pesava toneladas.
Quem mais me inspirou, foi o meu pai e a comunidade surda, onde me ancorei, acreditando sempre que no meu mundo eu estava salvaguardada. Era o lugar onde estava entre pares e sem aparentes, riscos acrescidos. O meu pai foi o primeiro surdo empresário, dono de uma tipografia, uma grande inspiração de perseverança em nunca desistir de desafios constantes… O meu pai foi sem dúvida, a pessoa que mais me inspirou.
Todas as vidas têm um “mas”. O meu foi quando aos catorze anos, vivi uma situação exaustiva de abandono. Nesta condição de sentir “morrer na praia”, consegui traçar o plano perfeito neste meu mundo imperfeito. Daí em diante foi sempre lutar até ao máximo das minhas forças mentais e físicas.
Tornei-me uma ativista da comunidade surda, fui a primeira funcionária formal da Associação Portuguesa de Surdos do Porto, onde trabalhei quase 20 anos. Dediquei-me por completo pela comunidade surda, ”meus pares”, em tribunais, exames de código para obtenção de carta de condução, formação, passando pela empregabilidade de pessoas surdas, alfabetização, entre outras múltiplas ações como acompanhar pessoas surdas em diferentes departamentos do SNS, segurança social, autarquias, PSP, GNR e muitas outras atividades de comunicação essenciais e de sobrevivência para os surdos. A minha prioridade (a seguir às minhas filhas), são sempre as pessoas surdas. Sempre!
Hoje aos 63 anos, fiz as pazes, possíveis, com todos os sofrimentos que vivi.
Hoje sou muito feliz. Vivo como um sonho uma vida plena como antes não havia experienciado.

 

Na sua qualidade de activista pela importância da língua gestual, facilita e promove ativamente iniciativas de formação. Gostaríamos de saber quem é que geralmente se inscreve nas aulas e que diversidade ou características comuns observa entre os alunos, tendo em conta factores como a origem, as motivações e a sua abordagem à aprendizagem da língua gestual?

Eu defendo que a formação da Língua Gestual deve ser, sempre que possível, desenvolvida pelas pessoas surdas. Caso não haja disponibilidade, nesse caso intervenho enquanto formadora. Para obtenção de aprendizagens da Língua Gestual Portuguesa, quem me procura são pessoas que necessitam de currículos e ferramentas funcionais, ou seja, ensino o vocabulário necessário para o fim em vista, como exemplo, os enfermeiros, dão-me uma listagem do vocabulário mais usual que necessitam em Língua Gestual e eu ensino dentro desta necessidade.
Quem mais me procura são: enfermeiros, entidades com fins humanitários, professores nas escolas do 1º. Ciclo entre outros.
A pandemia (Covid 19) acabou por dar grande visibilidade aos intérpretes de Língua Gestual, provocando o desejo de aprender esta Língua a muitas pessoas. Neste caso remeto os interessados para as Associações de surdos, que habitualmente abrem inscrições para cursos.

 

A língua gestual, incluindo a Língua Gestual Portuguesa (LGP), é uma forma de comunicação expressiva e cheia de significado, com uma gramática e um vocabulário únicos. Para os interessados em aprofundar o conhecimento desta língua, pode dar uma explicação mais detalhada sobre o que é a língua gestual? Além disso, pode partilhar informações sobre cursos ou instituições específicas que se destinam a pessoas interessadas em aprender e compreender a Língua Gestual Portuguesa?

A Língua Gestual não é universal, cada país tem a sua. Porquê? Uma interrogação constante. Ao longo do meu trabalho, desfiz este mito milhares de vezes. A língua gestual, é uma língua visual tendo a sua génese na cultura local. Para melhor entendermos, a ação de pescar um peixe, em Portugal ou África não é igual. Daí o gesto ser diferente em cada país. A criação do gesto advém de ser “espontâneo, imediato, procurando satisfazer necessidades mínimas de comunicação […] torna-se simbólico organizado num sistema complexo que pode assumir uma estrutura complexa como a da língua falada”, como escreveu Maria Isabel Prata em “mãos que falam” publicação de 1980 do laboratório de fonética da faculdade de letras da universidade de Lisboa.
A Língua Gestual não é uma linguagem, porquanto tem uma gramática própria tem regras claras sobre os seus aspetos morfológicos e sintáticos.
Há cursos superiores de Língua Gestual, para interpretes na ESE do Porto, na Universidade de Coimbra, na ESE de Setúbal e na UCL.
Quem desejar aprender língua gestual sem necessidade de qualificação académica, deverá dirigir-se às associações de surdos mais próxima, onde existem habitualmente, formações, de vários níveis para aprendizagem desta língua.

“Temos sempre o sonho de nos dirigirmos a algum lugar e sermos surpreendidos por alguém que sabe falar em língua gestual, é só transformar o sonho em acessibilidade”

Pela sua experiência, faria sentido que a LGP fosse disponibilizada como disciplina opcional em todas as escolas públicas? Como é que essa integração poderia contribuir para promover um ambiente mais inclusivo e compreensivo no sistema educativo e que impacto potencial poderia ocorrer nas atitudes da sociedade em relação a esta forma de comunicação?

Claro que seria muito importante que a LGP fosse uma disciplina opcional em todas as escolas publicas e privadas. Quantas mais pessoas souberem comunicar em LG, mais os surdos se sentirão incluídos. Sabendo nós, segundo a Federação das Associações de surdos, que há 30.000 surdos falantes nativos da Língua Gestual Portuguesa, se o publico em geral comunicasse em LG tornaria a vida dos surdos incomparavelmente mais feliz.
O impacto na vida da Pessoa surda, seria maior, se, apenas, 5% da população portuguesa soubesse Língua Gestual. Faria muita diferença na qualidade de vida desta comunidade.
Por outro lado, deixaríamos o mundo bastante melhor e mais solidário.Temos sempre o sonho de nos dirigirmos a algum lugar e sermos surpreendidos por alguém que sabe falar em LG, é só transformar o sonho em acessibilidade.

“Generalizar a aprendizagem da língua gestual é um passo gigante para derrubar barreiras de comunicação entre a pessoa surda e a ouvinte”

Como avalia a acessibilidade geral dos espaços públicos e ambientes urbanos da cidade para indivíduos com deficiências auditivas? Existem aspectos específicos da infraestrutura ou dos serviços da cidade que, na sua opinião, poderiam ser melhorados para aumentar a inclusão da comunidade surda?

Se compararmos com os anos 60, obviamente que estamos muitíssimo melhores. Porém não podemos esquecer que, enquanto as pessoas surdas tiverem que pagar ao intérprete, para poderem comunicar, o mundo deles será duplamente penalizado e discriminado.
As cidades serão inclusivas, aos surdos, quando eles puderem comunicar com as forças de segurança, em hospitais, entidades publicas, museus, palcos de espetáculos musicais, de teatro e dança, em conferencias, em eventos, em restaurantes, cafés, etc., ou até na rua conseguirem ter acesso natural à sua língua materna.

Embora a nossa sociedade esteja a tornar-se mais aberta à inclusão, como o demonstra a visibilidade e a viabilidade da tradução em língua gestual em eventos públicos, continua a ser notória a ausência de opções para tornar este serviço disponível e acessível às necessidades quotidianas dos cidadãos surdos.  Na sua opinião, que estratégias proporia para a implementação destes serviços?

Generalizar a aprendizagem da língua gestual é um passo gigante para derrubar barreiras de comunicação entre a pessoa surda e a ouvinte.
Como estratégia, sugiro a simples possibilidade, dos surdos terem acesso aos intérpretes de Língua Gestual sempre que deles necessitem, em qualquer circunstância, através de uma bolsa de interpretes em língua gestual disponíveis à distância de um clique de telemóvel.

“Temos que ter sempre em mente que os ouvintes podem aprender Língua Gestual, mas os surdos não podem aprender a ouvir!”

No exercício de intérprete de língua gestual no Centro de Apoio aos Sem Abrigo (CASA), poderia relatar uma experiência específica que esclarecesse os desafios enfrentados pelos indivíduos da população surda sem-abrigo?

Há uns anos, fui chamada pela “CASA” para apoio na comunicação a um surdo sem abrigo que se apresentava muito triste. Naquela noite, identifiquei o meu João (nome fictício por proteção).
A Tânia (que me contactou da “CASA”), viu a transformação imediata do João antes e depois de me ver.
O abraço foi inevitável.
Entre lágrimas e risos, eu e o João olhávamo-nos incrédulos… conhecíamo-nos há mais de 20 anos. O João pegou na sua velha carteira e de lá tirou um cartão de visita com o meu nome, que guardava há mais de 20 anos. O telefone que lá constava ainda era de 5 dígitos, já obsoleto. Mas o João não sabia nada disso. O João guardou sempre aquele cartão na esperança de me reencontrar para lhe dar o apoio que tanto precisava. Com o apoio da “CASA” conseguimos tira-lo da situação de sem abrigo.
Hoje sou uma espécie de cuidadora informal na acessibilidade do João ao mundo que o rodeia.

Uma experiência inesquecível.

Reflectindo sobre o seu percurso, como compara e avalia a situação atual, no que diz respeito à representação e à aceitação da comunidade surda? Que mudanças significativas observa e em que áreas ainda considera que requerem atenção para uma significativa inclusão e empatia para com a comunidade surda? 

O menos é mais, por isso apenas isto:
Temos que ter sempre em mente que os ouvintes podem aprender Língua Gestual, mas os surdos não podem aprender a ouvir!
Pensemos nisto juntos, com carinho!

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