Alice Joana Gonçalves

Alice Joana Gonçalves

“a arte é o meio mais amoroso para uma reflexão coletiva. Como o cravo nas espingardas dos soldados do 25 de Abril, a arte é a Celeste, a florista que distribuiu os cravos”

Nesta entrevista conversamos com Alice Joana Gonçalves, artista visual, performer que desenvolve o seu trabalho cruzando disciplinas como arte, política, justiça social. Alice será também a nossa próxima curadora da conversa warm up que tem como tema “Manifestar a beleza: Desafiar ideais, abraçar a singularidade”.

Com uma carreira com diversas distinções que atestam a sua abordagem inovadora, o currículo de Alice Joana Gonçalves é testemunho do seu empenho inabalável em ultrapassar os limites da expressão artística. Desde o seu trabalho de estreia, “Apocalipse”, que lhe valeu o prémio Jovens Criadores; dois depois volta a ganhar o Prémio Jovens Criadores e os Prémios Novos até às suas colaborações com personalidades como Julião Sarmento e Daddy G (Massive Attack), o percurso de Alice é marcado pela coragem, criatividade e uma determinação feroz em desafiar o status quo.

Junte-se a nós para descobrir as complexidades da beleza, a igualdade de género e o poder da arte performativa na formação da nossa consciência colectiva. Desde a sua exploração do corpo humano como ferramenta de expressão artística e de crítica política até ao seu compromisso inabalável de ressignificar o corpo da mulher no contexto da sociedade civil. Bem-vindos!

Na sua prática artística apresenta uma abordagem à arte performativa política, utilizando o seu corpo como o veículo de expressão artística e de crítica política. Poderia aprofundar a forma como explora a intersecção entre o corpo humano, a arte e a política no seu trabalho, e o que a motiva?  

A utilização do corpo na minha expressão artística é uma inevitabilidade, porque não tenho as ferramentas de alguém que estudou Belas-Artes. Por este motivo, a minha ferramenta de trabalho restringe-se ao meu corpo. Tendo vindo da área do direito e com mestrado em direito penal, que é a disciplina que que mais abala a nossa concepção sobre o indivíduo e a responsabilidade coletiva que todos nós, temos por viver em comunidade, a questão da justiça social sempre foi uma preocupação para mim. A arte é o meio mais eficaz para transformar a sociedade e fazê-la evoluir relativamente a questões mais sensíveis, como a questão da lei do aborto, como a eutanásia, como a responsabilização dos políticos na nossa relação com a nossa pátria. O ambiente artístico é um ambiente sem prejuízos, descontraído, multidiverso em que todas as pessoas sentem que podem ser quem são e exatamente por isso, a par da educação, a arte é o meio mais amoroso para uma reflexão coletiva. Como o cravo nas espingardas dos soldados do 25 de Abril, a arte é a Celeste, a florista que distribuiu os cravos.

“A arte é o meio mais eficaz para transformar a sociedade e fazê-la evoluir relativamente a questões mais sensíveis, como a questão da lei do aborto, como a eutanásia, assim como a responsabilização dos políticos na nossa relação com a nossa pátria”

Mencionou, nas suas publicações, a re-significação do corpo das mulheres no contexto da crítica política e da sociedade civil. Poderia falar sobre alguns dos temas ou questões específicas que aborda nos seus espectáculos e de que forma contribuem para reformular as percepções do corpo das mulheres?

O meu trabalho performático passou, até à data, por 3 etapas, a primeira durou cerca de uma década (dos 26 aos 36 anos) e todas as minhas performances feitas neste período são visualmente abstratas, viviam mais da tensão do corpo da mulher /performer criada com o público. A ideia era construir performances sem picos, lineares em termos de tensão e o desafio era como poderia manter essa tensão durante toda a performance, sem recorrer a picos de êxtase para manter o público comigo. No fundo pretendia que o espectador entrasse numa espécie de meditação ativa e abstracta, mas na qual o meu corpo (de mulher) era um objecto ao serviço de uma imagem. A reflexão, de uma forma velada, era a questão da objetificação, a submissão e a dependência emocional em relação a uma sociedade machista.
Aos 35 anos senti vontade de parar com este tipo de performances (a maioria solo performances) e “sair para o mundo”, “manifestar-me”. Comecei uma série de projetos maiores, com equipas grandes e com mensagens para o mundo, sempre no feminino – o prazer latu sensu como motor de transformação social. Assim como, projetos eminentemente de carácter social/político como o “Não Sou Marcela Mas Também Faço Política” e o “Prazer, Política e Arte”.
Agora com 38 anos, estou a voltar às performances a solo, apresentando o corpo muito politizado, imediato, urgente e maduro …

“Os meus vídeos estão sempre a ser censurados “deitados abaixo” pela META e tenho sempre que enviar recurso para voltarem a publicar o vídeo (em nenhum deles estou nua, ou a revelar partes íntimas), há uma assunção que, qualquer mulher que publique um vídeo de cueca e soutien, está a publicar conteúdo de nudez e atos sexuais explícitos”

Como vê o seu trabalho a contribuir para conversas mais amplas sobre a igualdade de género e os direitos das mulheres, em particular ao desafiar o olhar patriarcal que frequentemente objectifica e restringe os corpos das mulheres?

Se observarmos as redes sociais, constatamos por exemplo, que as mulheres não podem mostrar os mamilos porque serão censuradas.
Os meus vídeos estão sempre a ser censurados “deitados abaixo” pela META e tenho sempre que enviar recurso para voltarem a publicar o vídeo (em nenhum deles estou nua, ou a revelar partes íntimas), há uma assunção que, qualquer mulher que publique um vídeo de cueca e soutien, está a publicar conteúdo de nudez e atos sexuais explícitos (esta é a razão que me é dada em notificação pela META sempre que um vídeo meu é censurado). Obriga-me, por este motivo, a pedir recurso, reconhecem sempre o erro e voltam a colocar o vídeo online.
Este olhar da META é a metáfora do olhar de toda a sociedade sobre as mulheres. Não é?!

Como alguém que faz a ponte entre os mundos da arte e da política, qual é, na sua opinião, o potencial impacto de trazer mulheres artistas para a esfera pública como agentes de mudança social?

Hummm… Este ainda é um caminho que não se pode dizer que seja já caminho.
Teremos que analisar o mundo da política e dos partidos políticos para percebermos se estão abertos a serem impactados realmente pela sociedade civil e pelos seus artistas. Não creio que isto aconteça!
Os partidos políticos são estruturas muito fechadas, e se, por algum momento, é aberta uma conversa com alguém da sociedade civil, mais depressa os seus militantes ficam fascinados com a guelra daquele sangue fresco, do que o contrário. No entanto, apesar dos partidos políticos poderem ficar momentaneamente “excitados” com algumas personalidades da sociedade civil, não resistem no momento seguinte, a se fecharem e serem conservadores. Ao invés, estas personalidades da sociedade civil não se sentem encantadas pela vida partidária quando conhecem a realidade dos partidos políticos. Comecei por tentar trilhar esta conversa entre as mulheres artistas e os partidos políticos, mas, não creio que ainda haja uma conversa, tão só uma troca de algumas palavras.

“Vejo as redes sociais como um ótimo meio de promoção para o meu trabalho artístico e como forma de quebrar o monopólio do mercado da arte.”

Pode partilhar algumas ideias sobre o processo de criação de arte performativa especificamente para as redes sociais e sobre a forma como utiliza as ferramentas disponíveis para interagir com os espectadores e provocar debates significativos?

Vejo as redes sociais como um ótimo meio de promoção para o meu trabalho artístico e como forma de quebrar o monopólio do mercado da arte. Hoje, os artistas têm de saber e fazer tudo como um empresário. Estamos na Era do capitalismo e todos nós somos impelidos a sermos escravos e empresários de nós próprios. O lado positivo, é que podemos quebrar o monopólio estabelecido e entrar num mercado mais abrangente, consequentemente depois o mercado da arte não nos resistirá a piscar o olho. Eu, como artista de performance, tive claramente que pensar isto de forma antecipada, pois desde sempre soube que as galerias de arte em Portugal e artistas de performance não se casam.
A Marina Abramovic em Portugal nunca seria Maria Abramovic.

Recentemente, um curador da Paris Photo, abordou-me e disse-me que o trabalho que eu estou a desenvolver, neste momento no Instagram, não é Arte, mas sim Comunicação Social. Este curador, conhece o meu trabalho há muito tempo, mas, no alto da sua masculinidade patriarcal parece ter achado que, por um momento, eu não saberia distinguir a diferença entre Arte e Reação Social, Promoção e Comunicação. Sem considerar todos os “SES” que a conversa do que é ou não é Arte, tem.
Expliquei-lhe, por isso, que o que estou a fazer nas redes sociais não substitui as minhas performances ao vivo… são uma extensão “comercial” do meu trabalho. Mansplaining!
Esta critica seria um perigo se me fosse dada quando eu estava a começar, pois talvez tivesse um impacto negativo na minha persona artística. Hoje, segura dos passos que dou a cada momento, conscientes e sólidos, consigo rapidamente desmantelar a subversão daquela mensagem.
Por outro lado, fico satisfeita por esta aversão inicial por parte do Curador ao meu trabalho. Porque é que um curador tão experiente sente a necessidade e a urgência de me comentar?!

Quanto ao lado mais utilitário das redes, divirto-me a descobrir fórmulas de edição, gifs, músicas em alta, filtros, etc.  Sinto-me como uma criança a explorar todas estas ferramentas e colocá-las ao servido da mensagem. A ideia é mesmo que tenha este aspeto rarefeito, caseiro… rudimentar.

Como conceptualiza a noção de “ideal” de beleza e que ideias tem sobre a forma como este ideal é construído e perpetuado na sociedade? Além disso, acredita que a beleza vai para além da mera aparência, abrangendo o comportamento ou a conduta, particularmente na forma como a sociedade impõe muitas vezes estes padrões predominantemente às mulheres?

Aos 20 anos, o meu corpo era “classificado” dentro de um arquétipo de beleza. Aos 38 anos o meu corpo já não se enquadra no conceito “top model”, mas persiste a tendência de o enquadrar dentro de um arquétipo.
Pela minha experiência, que sempre estive dentro do padrão da “menina bonita” e agora de mulher extremamente voluptuosa e atraente, sinto, diariamente, o preconceito que um corpo destes, como o meu, pertence a um ser Hiper sexual, extrovertido, descontrolado emocionalmente… Diria que esta leitura é só o oposto daquilo que eu sou. Este preconceito magoa e o preço a pagar todos os dias é alto. Mas a minha missão é maior do que estes desaforos de uma sociedade patriarcal, que pretendo educar através do que eu faço.

“A ditadura da beleza feminina e do seu comportamento social, é fruto de um conjunto de fatores conjunturais, mas essencialmente fruto de fatores estruturais sociais que estão montados desde há séculos”

Enquanto curadora da 5ª conversa warm up Festival Impacto que pretende aprofundar o tema multifacetado do preconceito no contexto de “Manifestar a beleza: Desafiar ideais, abraçar a singularidade”, quais são os desafios e as suas expectativas para esta conversa?

“Desarmadilhar” o terreno. A ditadura da beleza feminina e do seu comportamento social, é fruto de um conjunto de fatores conjunturais, mas essencialmente fruto de fatores estruturais sociais que estão montados desde há séculos. Com esta conversa e com as minhas convidadas do painel, quero poder relevar em 4 perspectivas diferentes (da ditadura dos algoritmos e dos trends nas redes sociais; da saúde mental; da história da arte; da filosofia estética) do campo minado em que todas nós mulheres vivemos.

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